Carla Bruni vai mudando de papéis, mas a voz mantém-se inalterável

Como manequim era demasiado culta, como cantora excessivamente bela. Ao lado de Sarkozy era a esquerda chique de braço dado com a direita. E agora como ex-Primeira-Dama? A música é que é a mesma de sempre.

Fotogaleria

Carla Bruni
Little French Songs
Teorema, distri. Universal

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Carla Bruni
Little French Songs
Teorema, distri. Universal


Não é de agora. Sempre foi assim. Múltipla. Complexa. Provocando divisões. Gostando de ser o centro das atenções. Lidando com esse facto com desenvoltura. Adaptando-se. Sim, fazendo o seu papel, dizendo que lhe é difícil. Mas gostando.

E qual é o problema? Absolutamente nenhum. É italiana mas afirma-se simbolicamente francesa. Na década de 1990, no universo da moda, que abraçou deixando a meio um curso de moda, era invejada. Era a culta do circuito das supermodelos.

Pelo contrário, na década de 2000, quando lançou o primeiro álbum (Quelqu’ Un M’a Di de 2002) disse-se de forma paternalista no universo da música que para uma manequim não estava nada mal. O seu enorme sucesso foi lido à luz da sua beleza. Era espiritualidade, sem grande densidade, dizia-se.

Ao segundo disco o sucesso foi menor, mas alcançou a credibilidade como cantora que ela ambicionava. Depois tornou-se Primeira-Dama, ao lado de Sarkozy, e recomeçaram as leituras, desta vez ampliadas, porque o circo mediático era bem maior.

Não surpreende que o terceiro álbum, Comme Si De Rien N’ Etait, tenha sido recebido com desconfiança. Mais uma vez, era como se tivesse que prestar provas, personificando a esquerda chique de Paris de braço dado com a direita. Agora já não está no Eliseu e as canções são lidas à luz do facto de ser ex-Primeira-Dama. É inevitável, apesar de tentar separar as águas. Há dias abandonou mesmo uma entrevista por causa de uma questão sobre o marido.

O que é curioso, apesar dos diferentes contextos mediáticos em que foi lançando álbuns, é que não mudou quase nada de sonoridade ao longo dos anos. Sim, houve mudanças subtis, mas sem grandes convulsões. O novo álbum, Little French Songs, vai na mesma direcção: é um disco de canções nostálgicas, com qualquer coisa de afectuoso e voluptuoso. Não provoca grandes tensões. Essas existem mas são leituras para lá da música.

A voz mantém-se felina, um pouco rouca, mas calorosa. O sentido melódico, como sempre, está próximo da folk ou da canção popular francesa. É talvez um álbum mais minimalista, ao nível da instrumentação, mas o tom quase confessional é análogo.

Quem quiser encontrar segundas leituras nas letras tem por onde se entreter (já se disse que La pingouin pode ser uma alusão ao actual presidente francês, ou que Mon Raymond pode ser sobre Sarkozy, enquanto Chez Keith et Anita remonta à relação entre Keith Richards e a então manequim Anita Pallenberg, contendo referências aos tempos de boémia nos anos 1960, e até canta em italiano Dolce francia para louvar a França).

Ela acaba por se defender bem de todos os embates, por entre rendilhados melódicos, instrumentação discreta, voz graciosa e referências inatacáveis (Brel, Ferré, Gainsbourg ou Barbara).  

Quem a acha sem profundidade não irá mudar de opinião. Quem gostou dos anteriores álbuns, não irá ficar desapontado. E quem procurar outras leituras, para lá da música, certamente que as encontrará. No fim de contas continua a gerir, com espírito livre, o seu caminho.