Crítica de Música: Como se o encantamento fosse ainda possível

3,5 estrelas. Num Campo Pequeno praticamente esgotado, os Sigur Rós passaram por toda a sua carreira em quase duas horas de concerto.

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Em 2008, quando tocaram no Campo Pequeno a que regressaram quinta-feira, segunda data da passagem por Portugal, um dia depois do concerto no Coliseu do Porto, o feitiço tornara-se corriqueiro e a singularidade da música, inevitavelmente, um dado adquirido. Ainda para mais, a preciosidade do intimismo dera lugar a uma euforia de confetes, tambores e alegria pop decididamente estranha a quem não lhes punha a vista em cima desde os tempos longínquos da estreia no CCB.

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Em 2008, quando tocaram no Campo Pequeno a que regressaram quinta-feira, segunda data da passagem por Portugal, um dia depois do concerto no Coliseu do Porto, o feitiço tornara-se corriqueiro e a singularidade da música, inevitavelmente, um dado adquirido. Ainda para mais, a preciosidade do intimismo dera lugar a uma euforia de confetes, tambores e alegria pop decididamente estranha a quem não lhes punha a vista em cima desde os tempos longínquos da estreia no CCB.

Quinta-feira, num Campo Pequeno muito próximo de esgotado, não houve o encantamento do primeiro encontro – como poderia? – nem a incómoda sensação de ver uma banda a tentar jogar o jogo do estrelato de grande dimensão sem ter perfil para isso. Os Sigur Rós foram jogo de sombras (a início, com um pano translúcido a separar músicos do público), poder animista evocado manchas de electricidade (as criados pela guitarra tocada com arco de violoncelo por Jónsi) e sensibilidade à flor da pele que o público, ontem como hoje, acompanhou com silêncio embevecido.

Em palco, os velhos conhecidos Jónsi, vocalista e guitarrista, Georg Hólm, baixista, e o baterista Orri Páll Dýrason, a que se juntaram secção de cordas e de sopros e um par de músicos que, tal como os fundadores, se dividiram entre teclados, vibrafones, percussões. Onze erguendo muralhas sonoras de acordo com as mecânicas estabelecidas pelo pós-rock, mas desenhando também quadros sónicos gentis, ora sofridos, ora alienígenas, ora prenhes de felicidade – tal como a voz de Jónsi.

Quando os Sigur Rós surgiram no mapa musical, fizeram-se todas as analogias entre a sua música e os traços mais comuns da geografia e mitologia islandesa, os vulcões, as montanhas, o oceano, os duendes. Eles riam, protegidos pela língua impenetrável, e brincavam.É mesmo verdade, os islandeses acreditam em duendes. Mais sérios, confirmavam que sim, a natureza que os envolve e a insularidade tinham obrigatoriamente que encontrar caminho para a sua música.

Depois das quase duas horas de concerto, não passámos a acreditar em duendes, mas vimos o imaginário da banda de Takk...., através das luzes e vídeos projectados, complementar-se harmoniosamente com o som: o baile de máscaras de Vaka, a Untitled 1 de ( ), a tempestuosa Ný batterí, com a sombra de Jonsí crescendo, gigante, no pano na boca de cena, a desolação dos rochedos projectados em E-bow, batida marcial crescendo até atingir o peso existencial que Thom Yorke tornou imagem de marca na passagem do milénio. E as imagens subaquáticas de Sæglópur, caixinha de música que se transformou, quando a violência da distorção ganhou protagonismo, em catarse Swans (se os Swans pregassem a fragilidade como virtude); e a lenta ascensão de almas de Varúð, acompanhada com palmas no seu crescendo, uma das curtas liberdades a que o público se permitiu – porque os Sigur Rós são para seguir com reverência, intuímos.

No Campo Pequeno, mostraram-se canções do novo álbum em preparação, diluídas no restante repertório sem sobressalto (o concerto teve início, de resto, com uma delas, Yfirboro), e polvilhou-se o alinhamento com passagens por toda a discografia da banda.

Os Sigur Rós mostraram a força e a fragilidade da sua música. Neles, a exposição de uma alma dorida ganha barroquismo de pop de câmara (cortesia das cordas e metais) e o rock é matéria sonora feita de camadas de ruído em vagas crescentes (a guitarra de Jónsi, naturalmente). Neles, agora, não há a sensação de exclusividade: a filigrana de pianos e vibrafones tornou-se comum no cenário musical, adoptado por seguidores de línguas diversas, e a própria banda, como o prova a sua desequilibrada discografia, nem sempre consegue fugir a essa perda. Exemplo máximo: uma canção como Hoppípolla, que ouvimos depois de um tímido “obrigado por terem vindo”, a única quebra de silêncio entre canções do concerto, mostra como a singularidade se pode transformar em emoção descartável de anúncio publicitário, em banalidade pop que nada nos diz sobre o que tornou esta banda tão importante para tanta gente. Felizmente, teremos sempre Svefn-G-Englar. Foi a primeira do encore, foi aquela que começou tudo isto. É “a” canção dos Sigur Rós. Continua majestosa e inatacável no seu mistério, naquela união de órgão, mancha de guitarra e voz aparentemente nascida num lugar que a criatividade, por si só, não consegue explicar.

Com Svefn-G-Englar, seguida pela cavalgada final de Popplagið (a Untitled 8 de ( )), os Sigur Rós despediram-se como se o início não tivesse mais de uma década. A ilusão de que a surpresa e o encantamento são ainda possíveis.