Um Quixote para os dias de hoje na estreia de Lopes Graça no ballet de Estrasburgo

O coreógrafo português Rui Lopes Graça tem hoje o seu teste perante uma plateia habituada a revisitações de clássicos. A sua versão de Dom Quixote, de Cervantes, estreia hoje em Estraburgo.

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No fundo da sala, por entre a equipa técnica e os criativos, Lopes Graça conversa com Daniel Worm d’Assumpção, o desenhador de luz, e André Godinho, videasta, que realizou o vídeo que acompanha a nova produção do Ballet da Ópera du Rhin, que, pela primeira vez, dança uma obra, em estreia absoluta, de um coreógrafo português.

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No fundo da sala, por entre a equipa técnica e os criativos, Lopes Graça conversa com Daniel Worm d’Assumpção, o desenhador de luz, e André Godinho, videasta, que realizou o vídeo que acompanha a nova produção do Ballet da Ópera du Rhin, que, pela primeira vez, dança uma obra, em estreia absoluta, de um coreógrafo português.

Hoje, quando a sala de mais de 1100 lugares se encher, as mãos de Lopes Graça, e de Ivan Cavallari, director artístico, ambos de 48 anos, apenas com cinco dias de diferença, vão torcer-se e dobrar-se até poderem respirar de alívio. “É um risco”, diz Cavallari, italiano, antiga étoile do Ballet de Estugarda, no cargo há menos de um mês, vindo de Perth, na Austrália, onde dirigiu, entre 2007 e 2012 o West Australian Ballet. “Um risco, porque não é evidente que se possa mexer num bailado clássico desta forma.”

A forma é, efectivamente, uma surpresa. Rui Lopes Graça criou, a partir da viagem de um homem que procura entender a alma humana, uma coreografia que se revolta contra o que é material, desapossando os bailarinos de um movimento narrativo, linear, que pudesse seguir o livro de Miguel de Cervantes. E, sobretudo, uma coreografia que dialogasse com o movimento criado em 1869 por Marius Petita, que transformou o livro num bailado mas que, sobretudo, experimentou aqui muito do que viria, mais tarde, a desenvolver, e melhor, em La Sylphide, Lago dos CisnesRaymonda.

Rui Lopes Graça chamou-lhe Don Quichotte ou l’illusion perdue, precisamente porque aquilo que Cavallari define como “uma gentileza e finesse raras”, transforma o movimento onírico, por vezes deambulatório, num exercício de construção de um corpo em perda. Como se o corpo, o corpo de uma Europa em convulsão, então, no renascentismo, como agora, fosse essa ilusão perdida. Como se, afinal, a armadura que os bailarinos tentam expulsar do corpo fosse a pele que se lhes colou como um destino inevitável, agora amargo, representante do falhanço.

Para o coreógrafo português, que por estes dias se divide entre Estrasburgo e Lisboa, onde de 18 a 20 apresentará Paisagens Propícias, feita para a Companhia de Dança de Angola (no fim-de-semana seguinte no Porto), esta é uma oportunidade com a qual não estava a contar. “Tenho tido muita sorte”, diz. E percebe-se, nos movimentos que criou com os bailarinos, um ensemble novo, experimentado no clássico e no contemporâneo, mostram uma vitalidade no seu percurso onde não é difícil perceber como esse mesmo percurso se transformou depois de experiências como Gold, para a Companhia de Dança de Moçambique (2011), Paisagens Propícias, e Perda Preciosa, com André e. Teodósio, para a Companhia Nacional de Bailado (2012). Hoje, é o próprio que o diz, “é um movimento mais maduro”, que vive menos preocupado com um desejo de completude, e experimenta, no corpo, um conjunto de imagens que, até então, pareciam presas a uma comunicabilidade imediata.

Para Cavallari, que com esta coreografia procura construir para o Ballet da Opera du Rhin um repertório “que possa fazer distinguir a companhia num contexto de circulação difícil”, o que caracteriza o trabalho de Rui Lopes Graça é essa “generosidade de se transformar”, salientado, uma “visão aberta, que consegue apelar a um gosto culto e a um público mais diverso”. Para o coreógrafo, o que aprendeu com os corpos dos bailarinos de Angola e Moçambique, e com as construções dramatúrgicas elípticas de André e. Teodósio, é uma espécie de “espera pelo movimento”. Por isso, os bailarinos vivem numa espécie de espaço-tempo, entre as memórias do livro, sugerido pelo diálogo cenográfico (Bruno de Lavenère) entre o palco, inclinado, no chão, e o ecrã de vídeo, suspenso. E, por isso também, quando ao 3º acto é a coreografia de Petipa que toma o lugar da de Lopes Graça, é a dimensão de sonho que se constitui como elemento anacrónico numa coreografia que extravassa as dimensões do próprio palco.

Rui Lopes Graça assim o intencionou e em muito contribuiram as luzes fantasmáticas de Daniel Worm d’Assumpção, o video de André Godinho, que parece rimar com o cinema de Werner Schroeter e as experiências de criação coreográfica para cinema de Thierry De Mey, pela sua composição agridoce, espantosamente contemplativa, e uma selecção musical, interpretada pela Orquestra Filarmónica de Estrasburgo, conduzida pelo maestro Myron Romanul, que parte da composição original de Léon Minkus e a confronta com obras do século XVII de Purcell e Franz Biber, contemporâneos da escrita de Cervantes.

“É um risco”, repete-nos Cavallari, como se quisesse reforçar aspectos de uma escolha que procura constituir-se como “um equilíbrio, mas não uma combinação, entre o clássico e o contemporâneo”. O grande desafio, diz-nos, “é saber como podemos colocar, ao mesmo nível, duas linguagens que parecem opostas, mas que, sendo uma herdeira da outra, conversam de igual para igual”.

Don Quichotte ou l’illusion perdue estreia hoje e apresenta-se até 13 de Fevereiro, iniciando, depois um conjunto de apresentações na região da Alsácia. 

 O PÚBLICO viajou a convite do Ballet de l’Ópera National du Rhin