Morreu o encenador Joaquim Benite, "um vencedor"

Benite foi o rosto de um dos mais importantes projectos de teatro em Portugal. Criou, na margem sul do Tejo, um festival de teatro que se tornou referência mundial. "Por muito amargurado, ofendido, preocupado com a mísera sorte de todos nós, conseguiu."

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Benite foi o rosto de um dos mais importantes projectos de teatro em Portugal. O Festival de Teatro de Almada, que começou em 1984 no Beco dos Tanoeiros, e se tornou, ao longo das suas 29 edições, um dos mais relevantes festivais de teatro do mundo. Foi, ao lado dos Encontros Acarte, da Gulbenkian, o lugar por onde passaram as mais importantes companhias e os mais significativos nomes da cena mundial.

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Benite foi o rosto de um dos mais importantes projectos de teatro em Portugal. O Festival de Teatro de Almada, que começou em 1984 no Beco dos Tanoeiros, e se tornou, ao longo das suas 29 edições, um dos mais relevantes festivais de teatro do mundo. Foi, ao lado dos Encontros Acarte, da Gulbenkian, o lugar por onde passaram as mais importantes companhias e os mais significativos nomes da cena mundial.

O encontro em Almada, todos os anos de 4 a 18 de Julho, é considerado como um momento alto da programação teatral, não apenas em Portugal mas também um ponto de encontro para especialistas e público vindos de vários países. Foi por Almada que passaram companhias vindas da América do Sul e de África, quando ainda não existiam circuitos de programação instituídos. Foi também neste festival que se começaram a ver os primeiros nomes vindos da Europa do Leste, quando ainda não estavam abertas as fronteiras.

"A morte de Joaquim Benite é uma perda irreparável para a cultura portuguesa", escreveu Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP), num depoimento que fez chegar ao PÚBLICO esta manhã. "O seu trabalho como homem de teatro – fundador de uma das mais importantes companhias de teatro nacionais e de um dos mais importantes festivais de teatro europeus – marcou impressivamente a vida cultural do nosso país", acrescenta Jerónimo de Sousa. Para concluir: "Para nós, comunistas, a morte de Joaquim Benite significa, ainda, a perda de um camarada e de um amigo, de um militante comunista que, durante décadas, integrou o colectivo partidário do PCP."

Também o Presidente da República manifestou "profundo pesar" pela morte de Joaquim Benite, referindo-se em mensagem que "com o seu desaparecimento, a cultura portuguesa perde não só um brilhante homem de teatro, mas também um dos nomes que mais contribuiram para a sua internacionalização e divulgação".

Nascido em Lisboa em 1943, filho de um empresário do teatro, Joaquim Benite foi actor, quando tinha 17 anos, antes de perceber que “não tinha jeito nenhum”, disse, citado pela Lusa. Depois foi jornalista e crítico de teatro, com passagem pelas redacções de vários diários. Começou a trabalhar como jornalista aos 20 anos, no jornal República. Fez parte da redacção do Diário de Lisboa e foi chefe de redacção dos jornais O Século e O Diário, tendo no último sido director do suplemento cultural. Foi crítico de teatro no Diário de Lisboa

"Veio da crítica como alguns de nós (ele, o Luís Miguel Cintra, eu) que, nos anos do marcelismo, não queríamos nada o teatro que andava a ser repetido até à mais incomensurável chatice", resume o actor e encenador Jorge Silva Melo, dos Artistas Unidos. Que recorda: "Pobrezitos, lá vínhamos a altas horas do [café-restaurante] Monte Carlo, ao Saldanha, já de máquina em riste, atacávamos o que podíamos, tremendos, injustos até, apaixonados de certeza."

Abandonou a crítica – porque “não tinha muito sentido escrever sobre o teatro dos outros. Se uma pessoa gosta, é fazê-lo”, defendeu numa entrevista ao jornal i, em Julho deste ano, e citada pela Lusa. Fundou em 1971 o Grupo de Campolide: estreou-se na encenação com a peça O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer, de Agustin Cuzzani. 

Foi nesta altura que o actor e encenador João Mota, actualmente director do Teatro Nacional D. Maria II, o conheceu. Benite "era um antifascista, claro". "Depois de 1974, o objectivo dele era criar onde fosse possível estar mais perto do público, não necessariamente em Lisboa." Por isso foi para Almada, em 1978, depois de ter estado com o Grupo de Campolide, já profissionalizado, no Teatro da Trindade. E desse desejo de proximidade com o público nasceu, já em Almada, o festival.

A invenção de um público
Achou que “era bom ir para a periferia” por “uma razão estética e uma cívica”. Tal como começou a fazer teatro com a utópica esperança de ver os trabalhadores da Lisnave a subirem a Avenida 25 de Abril, de marmitas vazias, para se virem alimentar ao Teatro de Almada, explicou ao Ípsilon em 2010. Cedo perceberia, porém, que essa defesa de um teatro capaz de mobilizar as massas era pouco condizente com as condições em que as pessoas viviam. 

João Mota recorda que o festival "começou por ser entre nós, companhias portuguesas", antes de se tornar na "marca forte" que é hoje. E refere que Benite tinha "essa grande paixão e essa grande prática e disciplina de abrir, de passar por cima de pequenas coisas para ir mais longe": "É mais fácil destruir, cair nessa coisa de dizer mal, do que construir. Ele tinha essa capacidade, que fará muita falta neste momento de grave crise. Espero que o Teatro de Almada sobreviva." Quando morre "um mentor, um mestre, é difícil": "Espero que os meus colegas de Almada e a Teresa Gafeira consigam, que não vão abaixo, pelo contrário."

Em Almada, Benite estreou-se com Aventuras de Till Eulenspiegel, de Charles de Coster e Virgílio Martinho. A designação de Companhia de Teatro de Almada (CTA) viria mais tarde. Em 1988, inaugurou, com a peça de García Lorca Dona Rosinha, a Solteira, o Teatro Municipal de Almada (desde 2005 instalado no Teatro Azul, edifício da autoria dos arquitectos Manuel Graça Dias, Egas José Vieira e Gonçalo Afonso Dias). "O edifício do novo Teatro de Almada é uma espécie de conclusão lógica de um trabalho de invenção de público que vinha a desenvolver há uma série de anos. Um trabalho para que o teatro existisse, um gosto pelo teatro", diz o arquitecto Manuel Graça Dias, que se lembra de Benite como "um óptimo cliente". "O novo teatro foi apenas uma casa maior."

Ao longo de 40 anos de carreira, encenou textos de Shakespeare, Molière, Brecht, Lorca, Bulgakov, Pushkin, Camus, Adamov, Gogol, Beckett, Albee, O’Neill, Bernard, Neruda, Sinisterra, Duras, Marivaux, Feydeau, Skármeta, Peter Shaffer e Nick Dear, mas também Almeida Garrett, Gil Vicente e Raul Brandão, entre muitos outros. Fez também uma incursão na encenação de ópera, em 2008, com La Clemenza di Tito, de Mozart,  para o Teatro Nacional de São Carlos, e é autor de diversos textos para teatro, bem como de conferências e ensaios, tendo estado à frente de vários cursos de teatro e tendo dirigido, até ao fim, a revista de teatro Cadernos e a colecção de Textos d’Almada

 Foi "um vencedor", diz Silva Melo. "Em Campolide, no Trindade, depois em Almada (velha e agora nova), conseguiu falar ininterruptamente com uma comunidade que o ouvia, seguia, ripostava, admirava, temia, resmungava e voltava a amar."

Silva Melo fala numa "obra-prima, os espectadores de Almada, as pessoas mais calorosas (e numerosas) do teatro, por cá". E recorda: "A partir da histórica passagem do Miguel (Lobo Antunes) pelo Centro Cultural de Belém, Lisboa passou a ser Almada em Julho – permitindo assim conhecermos ora o Berliner ora os Stan, o Piccolo, Veronese ou o Young Vic."
 

Um milagre de trabalho
"Rezingão, intempestivo, rabugento, teimoso como todos os directores de teatro", Joaquim Benite "conseguiu": "Rápido e terno, ferozmente terno, claro. Por muito amargurado, ofendido, preocupado com a mísera sorte de todos nós, conseguiu. O Teatro Municipal de Almada, a sua excelente equipa (são meus amigos, vi-os crescer, cortar cabelo, engordar, encarecar), os seus maravilhosos espectadores, esse milagre de trabalho, ninguém os vencerá."

, o  , o , o , o , o Pela qualidade e quantidade de espectáculos de companhias nacionais e estrangeiras que todos os anos nele se apresentam , o Festival de Almada tornou-se no maior acontecimento teatral realizado em Portugal.  Ao Ípsilon, em 2010, Joaquim Benite recordou  uma frase de Silva Melo que dizia que "o festival é o sítio mais civilizado de Portugal". Benite orgulhava-se de ter criado "um lugar onde se encontram diferentes linhas estéticas mas que discutem, com maturidade, sobre as suas diferenças, sem se agredirem, e de forma flexível, num nível que não é o da confrontação sectária". 

Encontravam-se lá, também, diferentes gerações do teatro português. "O Festival de Almada tem uma importância inigualável", diz Jorge Andrade, da companhia Mala Voadora. "Tem mostrado e apoiado o melhor do teatro português, dando-lhe visibilidade internacional, pondo lado a lado companhias consagradas e companhias emergentes."

No actual ambiente de crise, diz Jorge Andrade, o festival "é, mais do que nunca, um exemplo de tudo o que de bom o teatro pode construir". 

Benite considerava que o público "cria pressões" e dizia que ao longo dos anos foi trabalhando para um público que se foi formando no festival, tal como ele se foi formando ao mesmo tempo. "Muitas vezes penso que o meu gosto evoluiu como evoluiu o próprio festival", disse ao Ípsilon. "Todas as pressões que existem encaro-as da mesma forma e tiro delas o melhor partido. Não acho que o festival deva criar situações de desconforto para o espectador, mas deve trabalhar para alargar a discussão." Afirmava que se programasse só o que gostava, "o festival seria mais pequeno". 

Várias encenações suas foram premiadas e ele próprio foi distinguido com a Medalha de Ouro de Mérito Cultural do Concelho de Almada e a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura, além de ter sido condecorado pelo Governo francês com o grau de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras e pelo rei de Espanha com a comenda da Ordem de Mérito Civil. Há dois anos havia sido condecorado com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República.

Quando lhe perguntaram se achava que ficaria na história, respondeu: “Os encenadores nunca ficam na história. Só os escritores, como o Shakespeare. Sabe, acho que vale a pena viver para nos divertirmos. Lutar por coisas para cumprir missões, não. O teatro é um sinal de civilização que está na origem da sociedade. Mas o teatro não tem missão nenhuma. É uma coisa que as pessoas fazem porque gostam, as outras vêm porque lhes dá prazer.” Com Tiago Bartolomeu Costa e Isabel Salema