VIH: “Quando se sabe é como se estivesse sempre uma terceira pessoa no quarto”

Há mais de 20 anos que o jornalista britânico Marcel Wiel sabe que é seropositivo. Tem dado a cara e foi o que veio fazer a uma conferência organizada pela Abraço na quinta-feira.

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Marcel Wiel dá a cara por todos os que não dão Helena Colaço Salazar

Mas sabe que tem “sorte”: “Vivo em Londres, sou branco de classe média, tenho educação, o inglês é a minha primeira língua, tenho algum poder económico. Escolhi trabalhar em indústrias em que ser aberto sobre ser gay e ser seropositivo não era um problema.”

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Mas sabe que tem “sorte”: “Vivo em Londres, sou branco de classe média, tenho educação, o inglês é a minha primeira língua, tenho algum poder económico. Escolhi trabalhar em indústrias em que ser aberto sobre ser gay e ser seropositivo não era um problema.”

Foi em 1990 que soube que era portador de VIH. Disse ao irmão, aos amigos e esperou 14 meses para contar à mãe. Sabia que a partir desse momento iria ter de lidar com dois problemas: o ser seropositivo e a reacção dela. 

Jornalista britânico, editor adjunto do serviço internacional de venda de notícias do jornal Guardian, é ainda autor do livro Find Love in a Gay Bathhouse ("Encontrar Amor numa Sauna Gay"). Esteve em Lisboa na quinta-feira numa conferência promovida pela Abraço, organização que apoia as pessoas com VIH e promove a sua prevenção.

Aos 48 anos, Marcel Wiel tem na gaveta o projecto de escrever um livro sobre o VIH, para o qual já tem título: From Doomsday to a Pill a Day ("Do Dia do Julgamento a Um Comprimido por Dia"), porque “o meu tratamento é um comprimido diário”. “Fui diagnosticado em 1990 e não havia tratamentos. Lembro-me de que quando perguntei ao médico quais eram as perspectivas ele disse: ‘Ah, são 50/50… Em dez anos vai estar ou muito doente ou morto.’”

Ei-lo em Lisboa, e a falar abertamente sobre o tema. Acha-se alguém que vive numa bolha de conforto – também um espaço que conquistou porque se coloca numa posição em que se protege da discriminação. Em situações de stress, confessa, tenta “pôr os sentimentos de lado e ser prático”. “Estamos a lidar com medo, preconceito, ignorância e às vezes é mais fácil ir embora. Outra coisa importante é ter consciência dos nossos direitos.”  

Começou os tratamentos em 2003 e durante 13 anos não precisou de nada. Agora toma um comprimido, que nos mostra, embrulhado em papel celofane. “Quando alguém é infectado, o corpo não tem defesas contra o VIH e o vírus produz uma enorme quantidade de cópias. A seguir, o sistema imunitário reage e começa a produzir anticorpos; e imediatamente o sistema imunitário fica em baixo. No princípio, os sintomas são como os da gripe, e por fora parece que está tudo bem, mas por dentro é como a I Guerra Mundial – milhões de células VIH a lutar contra milhões de anticorpos VIH. No final, o corpo fica esgotado, o VIH torna-se mais forte e atinge uma espécie de ponto de viragem em que a pessoa começa a ter problemas imunitários. Entre 2000 e 2003 foi o que aconteceu comigo, comecei a ter pequenas coisas que corriam mal: infecção das gengivas, tinha uma mancha no dedo, verrugas que eram tratadas e não desapareciam. Era apenas um sinal de que precisava de tomar alguma coisa. E comecei o tratamento, que é absolutamente fantástico. Disseram-me que iria ter imensos efeitos secundários, mas não tive nem um. Em dez dias não tinha mais infecções e os meus níveis de VIH num mês baixaram imenso.”

Hoje os estudos mostram que alguém com 20 anos que é infectado e recebe tratamento pode esperar viver mais 50 anos, segundo Kamal Mansinho, do Hospital Egas Moniz.

O “drama”, diz Marcel Wiel, é que as pessoas vêem gente como ele e são “complacentes/preguiçosas”. “Pensam: ‘Ele é seropositivo há anos, trabalha, casou-se, vai ao ginásio, visita a mãe, está bem…'" Mas não é assim: se deixar de tomar o comprimido diário, o sistema imunitário colapsa. A outra questão, lembra, “é que se desconhecem os efeitos secundários do tratamento a longo prazo: pode afectar o fígado, os rins, aumenta os riscos de problemas cardiovasculares, torna as pessoas mais vulneráveis a determinado tipo de cancro”.  

O tratamento da sida é um dos mais caros. Em Portugal, o Governo está a estudar o racionamento de medicamentos para o cancro, VIH e artrite reumatóide – em 2011 foram gastos cerca de 513 milhões de euros nos três tratamentos.

Se tivesse de pagar do seu bolso amanhã, Marcel Wiel não tinha dúvidas de que o faria. “Mas há fortes razões para o Estado pagar estes tratamentos. O objectivo do medicamento é manter o VIH a níveis quase nulos; o tratamento ajuda a manter o número de infecções baixo.”

“Não conseguia relaxar” na cama

Wiel era um jovem ainda com menos de 20 anos quando terá sido contaminado – por ter tido sexo desprotegido. Não nega a sua responsabilidade na “estupidez”. “Estava bêbado, não ao ponto de ficar caído no chão, as minhas inibições estavam em baixo, mas eu sabia o que estava a fazer." Por que é que se tem sexo desprotegido, com tanta informação sobre os riscos? "Uma das áreas em que a prevenção do VIH tem sido muito bem-sucedida é na troca das seringas, e acho que é porque a pedra que um drogado tem de uma seringa usada e limpa é a mesma de uma seringa usada. Mas há uma diferença entre ter sexo com e sem preservativo, por isso é preciso convencer as pessoas a mudar de comportamento.”

Na hora H, diz, há também “medo de se falar do assunto”. “Imagine que está numa situação de sexo ocasional, no quarto, e, no momento crítico, sabe que a coisa a seguir que vai acontecer é a penetração. Há duas escolhas: ou se diz alguma coisa, e isso quebra um pouco o ambiente, gera-se um momento embaraçoso – ai, o preservativo! –, ou se continua. Nalguns casos, as pessoas não têm segurança suficiente, alguns têm medo da rejeição.”

Pouco depois de saber que era seropositivo, Marcel Wiel conheceu aquele que viria a ser o seu parceiro e que também era seropositivo. Seguiram-se dez anos, entre 1995 e 2005, em que esteve solteiro, e nessa altura tinha “muito sexo ocasional”. “Se conhecesse alguém que achava atraente, lançava charme, seduzia, beijávamo-nos e depois fazia o meu discurso habitual: ‘Estou a ver onde vamos chegar, mas há uma coisa que preciso de te dizer e podes ter a reacção que quiseres, não tem mal nenhum. Sou seropositivo.’” Talvez, confessa, tivesse "um radar" para detectar “pessoas que sabiam alguma coisa sobre VIH e sexo seguro”, porque a verdade é que “foram menos de cinco” as vezes em que foi rejeitado. “Sendo aberto sobre isso, as pessoas ficavam agradecidas.”

Mas houve um período em que a sua relação com o sexo mudou: “Não conseguia relaxar”, sobretudo quando, numa relação heterossexual, o preservativo se rompeu. “Antes de saber, como todos os jovens, achava que nada me podia acontecer, que iria viver para sempre. E depois quando se sabe que se é seropositivo é como se estivesse sempre uma terceira pessoa no quarto – e isso fez uma grande diferença. O meu parceiro, com quem sou casado há oito anos, também é seropositivo. Uma das razões que me levaram a querer ter uma relação com alguém que era seropositivo era porque podia relaxar.”  

Antes de ser jornalista, Marcel Wiel trabalhou como contabilista numa ONG ambiental, depois numa ONG para sem-abrigo, à qual contou. A seguir começou a escrever sobre VIH para diversas publicações e organizações dedicadas à área, até se tornar freelancer para media tradicionais e depois subeditor no Guardian.

Está em Lisboa a falar abertamente. Os amigos sabem, os colegas de trabalho também. Expôs-se. Quais são as vantagens de ser seropositivo às claras? “Saí do armário em relação ao facto de ser gay quando tinha 18 anos, e dava-me com um grupo de activistas que me ajudou imenso. Eles sempre disseram: se és gay, tens o dever de o mostrar, porque há pessoas que, se não o fizeres, nunca o farão – e eles podem encontrar em ti força. Vejo o VIH da mesma forma. Acho que é o meu dever.”