La Spinalba ou a beleza do mundo

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Marta Araújo e Marcos Magalhães não conseguem esconder, no sorriso feliz, um enorme orgulho. Porque foram eles que pegaram, desde o início, em La Spinalba, projecto que se confunde com os próprios Os Músicos do Tejo, nascidos em 2005. A cravista e co-fundadora do grupo, que assumiu a direcção da produção do disco a lançar hoje, às 18h, na Sala Amália Rodrigues do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, lembra-se bem do princípio: "Andámos à procura de um nome, e complicámos tanto que acabámos por simplificar - escolhemos Os Músicos do Tejo, que tem a ver com Lisboa e connosco. A ideia era formar um grupo onde não fossemos só nós a tocar, mas onde fizéssemos os nossos projectos."

Marcos Magalhães, director artístico, músico, maestro e investigador, explica-nos o objectivo: "Queríamos fazer música orquestral e ópera, e tivémos a sorte de uma das nossas primeiras propostas ter sido aceite - La Spinalba, precisamente." Os Músicos do Tejo andavam atrás de uma ópera que tivesse a ver com Lisboa, e a escolha foi evidente: a obra de Francisco António de Almeida, compositor que terá morrido no terramoto de 1755. A ópera já tinha sido feita, mas nunca com instrumentos antigos, e tinha a vantagem de já estar em partitura, numa edição da Gulbenkian, da colecção Portugaliae Musica.

O primeiro concerto de Os Músicos do Tejo foi, no entanto, um espectáculo em Setúbal dedicado às árias de Luísa Todi. Mas ao mesmo tempo estava no ar a ideia de La Spinalba, que o grupo já tocava e cantava parcialmente em privado, em casa. Em 2006 tiveram uma reunião com Mega Ferreira, presidente do CCB, que lhes disse: "Vamos p'rá frente". E assim se lançou o processo que conduziu a este disco. Marcos Magalhães vê-o como "um culminar" de um longo trabalho. A partir do sucesso da ópera La Spinalba, apresentada em 2008 no CCB, Mega Ferreira propôs que Os Músicos do Tejo fizessem "uma ópera por ano". E isso deu-lhes "uma perspectiva de regularidade que alterou as coisas", diz Marcos. Para melhor, entenda-se, porque não pararam a partir daí.

Logo nos outros dois projectos iniciais (as árias de Luísa Todi e o projecto Sementes do Fado), sentiram a necessidade de registar o trabalho musical. Gravaram dois discos em edições de autor, "para não ficar só no efémero", diz Marta. E andaram em projectos paralelos de gravação e concertos.

Quando se apresentou ao vivo em 2008, La Spinalba esgotou o CCB. Repetida depois em 2009, teve uma pequena digressão com quatro escalas diferentes; no tal, Os Músicos do Tejo fizeram a ópera completa 11 vezes. Não podiam ficar por aí. E quando o crítico Bernardo Mariano lançou, no Diário de Notícias, o desafio "e para quando um registo discográfico?", coisa em que já tinham pensado, a ideia ficou a ecoar. Era preciso financiamento. Fizeram um pedido de apoio pontual à DGArtes, lançaram a sugestão à Naxos directamente. E a resposta desta grande editora (grande em quantidade de edição e capacidade de distribuição) foi: "A proposta é muito interessante. Estamos dispostos a editar se vocês conseguirem os apoios necessários." Alento suficente para não desistirem.

Não desistiram. E não é que conseguiram mesmo?

C'est bon

"Sentimos que tínhamos reunido uma equipa com..." - Marcos Magalhães procura a palavra certa. Marta Araújo interrompe-o com entusiasmo: "Foi um encontro! Ficámos surpreendidos com uma equipa que estava numa sintonia impressionante." Os dois confessam ter sido decisiva a energia do teatro trazida por Luca Aprea, que encenou a versão do CCB. "Os talentos complementavam-se muito bem", diz Marcos Magalhães, "e na ópera quase 90% do sucesso é a equipa; quando é boa as coisas funcionam". No princípio, Os Músicos do Tejo eram só Marta e Marcos. Depois conheceram Luca Aprea, que já tinha contacto com a ópera. E depois todos os outros. Marta conclui que "houve terreno fértil": "O Luca conseguiu captar o espírito da Spinalba e dar-lhe substância, com o Marcos na parte musical e na direcção da orquestra. E agora no disco o teatro está omnipresente. Acho que o Luca está ali." Marcos concorda: "Foi o facto de termos trabalhado naquela direcção que colocou logo a obra num contexto de questionamento com muito potencial e feito em conjunto."

Há uma palavra que resume para eles esta ópera: t'accheta, expressão que aparece várias vezes no libreto (de autor desconhecido) desta ópera cómica de 1739, palavra que soa a um italiano aportuguesado, e que faz um português rir. E está lá, no disco, agora fixada. Marta Araújo não esconde uma certa emoção nessa pequena memória: "Nunca mais me esqueço da orquestra a rir com este t'accheta".

Os apoios chegaram finalmente. Não desistir vale a pena. E com a luz verde para começar, arrancou a segunda fase de um trabalho imenso: conseguir datas para os cantores e os músicos, fazer um mapa de trabalho que desse para todos estarem presentes, e acabar tudo dentro do prazo. Encontrou-se a semana possível: 15 a 23 de Novembro. "Para três CD? Pensámos que ia demorar mais tempo". Mas tiveram outra sorte (ou melhor, procuraram-na): "Encontrámos um produtor, o Pierre Lavoix, que fez um mapa fantástico com o puzzle das disponibilidades de todos". Lavoix (que, entre muitas outras produções e óperas, fez o som do filme Parsifal, de Syberberg) foi o nome de mais um encontro feliz. "Como pessoa também, trouxe energia para a gravação e apareceu na altura certa.", dizem Marta e Marcos quase em coro. Confiaram nele. Quando ele dizia c'est bon! era porque estava.

E como foram gravar ao Salão Nobre do Instituto Superior de Economia e Gestão? Meio por acaso: depois de verem outras salas da antiga RDP e da Capela (que por razões diferentes não serviam), quase a desistirem, ouviram, tristíssimas, as pessoas que os acompanhavam na visita prospectiva: "Só se formos ali ver ao salão nobre". Foram.

E assim se pôs de pé um projecto que reúne muitos talentos de músicos, cantores, investigadores e encenadores. Projecto que encontrou os entusiasmos e as ajudas de programadores, de instituições, de amigos. Projecto extenuante, vencendo barreiras, levado, do início ao fim, por Marta e Marcos. "A organização fomos nós, tivemos de nos desdobrar: produção, contactos, agenda, equipamento, sala, gravação, tocar (ah!, como sabe bem sentarmo-nos a tocar quando está tudo pronto!...), pré-escolha, plano de montagem, montagem, masterização, livrinho." Tudo, tudo com a força da ópera (Marta entusiasmada: "Acho que se percebe no disco"; Marcos, cauteloso: "Calma, deixemos as pessoas ouvirem").

Tudo até receberem a caixa com o disco feito, uma última emoção. Estava ali o registo de um momento, o registo de um processo longo de alegrias e entusiasmos. "O mundo é fantástico", diz-nos Marcos quando já não sabíamos o que mais lhes perguntar. "Este disco é um agradecimento à beleza do mundo." "Já tenho vontade de fazer outra gravação!", diz Marta, sonhando as músicas do futuro. "Eu ainda não!", diz Marcos, "Quero saborear um bocadinho".

Têm os dois razão: façam outras gravações, e deixem-nos saborear um bocadinho.

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Marta Araújo e Marcos Magalhães não conseguem esconder, no sorriso feliz, um enorme orgulho. Porque foram eles que pegaram, desde o início, em La Spinalba, projecto que se confunde com os próprios Os Músicos do Tejo, nascidos em 2005. A cravista e co-fundadora do grupo, que assumiu a direcção da produção do disco a lançar hoje, às 18h, na Sala Amália Rodrigues do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, lembra-se bem do princípio: "Andámos à procura de um nome, e complicámos tanto que acabámos por simplificar - escolhemos Os Músicos do Tejo, que tem a ver com Lisboa e connosco. A ideia era formar um grupo onde não fossemos só nós a tocar, mas onde fizéssemos os nossos projectos."

Marcos Magalhães, director artístico, músico, maestro e investigador, explica-nos o objectivo: "Queríamos fazer música orquestral e ópera, e tivémos a sorte de uma das nossas primeiras propostas ter sido aceite - La Spinalba, precisamente." Os Músicos do Tejo andavam atrás de uma ópera que tivesse a ver com Lisboa, e a escolha foi evidente: a obra de Francisco António de Almeida, compositor que terá morrido no terramoto de 1755. A ópera já tinha sido feita, mas nunca com instrumentos antigos, e tinha a vantagem de já estar em partitura, numa edição da Gulbenkian, da colecção Portugaliae Musica.

O primeiro concerto de Os Músicos do Tejo foi, no entanto, um espectáculo em Setúbal dedicado às árias de Luísa Todi. Mas ao mesmo tempo estava no ar a ideia de La Spinalba, que o grupo já tocava e cantava parcialmente em privado, em casa. Em 2006 tiveram uma reunião com Mega Ferreira, presidente do CCB, que lhes disse: "Vamos p'rá frente". E assim se lançou o processo que conduziu a este disco. Marcos Magalhães vê-o como "um culminar" de um longo trabalho. A partir do sucesso da ópera La Spinalba, apresentada em 2008 no CCB, Mega Ferreira propôs que Os Músicos do Tejo fizessem "uma ópera por ano". E isso deu-lhes "uma perspectiva de regularidade que alterou as coisas", diz Marcos. Para melhor, entenda-se, porque não pararam a partir daí.

Logo nos outros dois projectos iniciais (as árias de Luísa Todi e o projecto Sementes do Fado), sentiram a necessidade de registar o trabalho musical. Gravaram dois discos em edições de autor, "para não ficar só no efémero", diz Marta. E andaram em projectos paralelos de gravação e concertos.

Quando se apresentou ao vivo em 2008, La Spinalba esgotou o CCB. Repetida depois em 2009, teve uma pequena digressão com quatro escalas diferentes; no tal, Os Músicos do Tejo fizeram a ópera completa 11 vezes. Não podiam ficar por aí. E quando o crítico Bernardo Mariano lançou, no Diário de Notícias, o desafio "e para quando um registo discográfico?", coisa em que já tinham pensado, a ideia ficou a ecoar. Era preciso financiamento. Fizeram um pedido de apoio pontual à DGArtes, lançaram a sugestão à Naxos directamente. E a resposta desta grande editora (grande em quantidade de edição e capacidade de distribuição) foi: "A proposta é muito interessante. Estamos dispostos a editar se vocês conseguirem os apoios necessários." Alento suficente para não desistirem.

Não desistiram. E não é que conseguiram mesmo?

C'est bon

"Sentimos que tínhamos reunido uma equipa com..." - Marcos Magalhães procura a palavra certa. Marta Araújo interrompe-o com entusiasmo: "Foi um encontro! Ficámos surpreendidos com uma equipa que estava numa sintonia impressionante." Os dois confessam ter sido decisiva a energia do teatro trazida por Luca Aprea, que encenou a versão do CCB. "Os talentos complementavam-se muito bem", diz Marcos Magalhães, "e na ópera quase 90% do sucesso é a equipa; quando é boa as coisas funcionam". No princípio, Os Músicos do Tejo eram só Marta e Marcos. Depois conheceram Luca Aprea, que já tinha contacto com a ópera. E depois todos os outros. Marta conclui que "houve terreno fértil": "O Luca conseguiu captar o espírito da Spinalba e dar-lhe substância, com o Marcos na parte musical e na direcção da orquestra. E agora no disco o teatro está omnipresente. Acho que o Luca está ali." Marcos concorda: "Foi o facto de termos trabalhado naquela direcção que colocou logo a obra num contexto de questionamento com muito potencial e feito em conjunto."

Há uma palavra que resume para eles esta ópera: t'accheta, expressão que aparece várias vezes no libreto (de autor desconhecido) desta ópera cómica de 1739, palavra que soa a um italiano aportuguesado, e que faz um português rir. E está lá, no disco, agora fixada. Marta Araújo não esconde uma certa emoção nessa pequena memória: "Nunca mais me esqueço da orquestra a rir com este t'accheta".

Os apoios chegaram finalmente. Não desistir vale a pena. E com a luz verde para começar, arrancou a segunda fase de um trabalho imenso: conseguir datas para os cantores e os músicos, fazer um mapa de trabalho que desse para todos estarem presentes, e acabar tudo dentro do prazo. Encontrou-se a semana possível: 15 a 23 de Novembro. "Para três CD? Pensámos que ia demorar mais tempo". Mas tiveram outra sorte (ou melhor, procuraram-na): "Encontrámos um produtor, o Pierre Lavoix, que fez um mapa fantástico com o puzzle das disponibilidades de todos". Lavoix (que, entre muitas outras produções e óperas, fez o som do filme Parsifal, de Syberberg) foi o nome de mais um encontro feliz. "Como pessoa também, trouxe energia para a gravação e apareceu na altura certa.", dizem Marta e Marcos quase em coro. Confiaram nele. Quando ele dizia c'est bon! era porque estava.

E como foram gravar ao Salão Nobre do Instituto Superior de Economia e Gestão? Meio por acaso: depois de verem outras salas da antiga RDP e da Capela (que por razões diferentes não serviam), quase a desistirem, ouviram, tristíssimas, as pessoas que os acompanhavam na visita prospectiva: "Só se formos ali ver ao salão nobre". Foram.

E assim se pôs de pé um projecto que reúne muitos talentos de músicos, cantores, investigadores e encenadores. Projecto que encontrou os entusiasmos e as ajudas de programadores, de instituições, de amigos. Projecto extenuante, vencendo barreiras, levado, do início ao fim, por Marta e Marcos. "A organização fomos nós, tivemos de nos desdobrar: produção, contactos, agenda, equipamento, sala, gravação, tocar (ah!, como sabe bem sentarmo-nos a tocar quando está tudo pronto!...), pré-escolha, plano de montagem, montagem, masterização, livrinho." Tudo, tudo com a força da ópera (Marta entusiasmada: "Acho que se percebe no disco"; Marcos, cauteloso: "Calma, deixemos as pessoas ouvirem").

Tudo até receberem a caixa com o disco feito, uma última emoção. Estava ali o registo de um momento, o registo de um processo longo de alegrias e entusiasmos. "O mundo é fantástico", diz-nos Marcos quando já não sabíamos o que mais lhes perguntar. "Este disco é um agradecimento à beleza do mundo." "Já tenho vontade de fazer outra gravação!", diz Marta, sonhando as músicas do futuro. "Eu ainda não!", diz Marcos, "Quero saborear um bocadinho".

Têm os dois razão: façam outras gravações, e deixem-nos saborear um bocadinho.