O mundo a acontecer

Como aqueles ornitólogos que podem vomitar ao avistarem um pássaro de beleza tão rara que se torna experiência violenta, assim Óscar José Nunes deitou fora 40 anos de vida, o tempo que levou a escrever um diário sobre a Ilha do Corvo - oito mil entradas, os dias dos barcos, os dias em que nasceram e morreram pessoas, o dia em que o Zepelin sobrevoou a ilha, 1945, o primeiro avião, 1983, o primeiro dia de energia eléctrica...

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Como aqueles ornitólogos que podem vomitar ao avistarem um pássaro de beleza tão rara que se torna experiência violenta, assim Óscar José Nunes deitou fora 40 anos de vida, o tempo que levou a escrever um diário sobre a Ilha do Corvo - oito mil entradas, os dias dos barcos, os dias em que nasceram e morreram pessoas, o dia em que o Zepelin sobrevoou a ilha, 1945, o primeiro avião, 1983, o primeiro dia de energia eléctrica...


Óscar viu o Zepelin sobrevoar, e como que por antagonismo, como sugere, sonhou que levitava e que com dificuldade passava por entre os cabos eléctricos.

Sem saúde, sem capacidade de organização em tempos mais recentes, precisou de se libertar de tanto peso: queimou os seus diários, o único pedaço de memória escrita sobre o Corvo, no arquipélago dos Açores, ilha habitada na zona sul, 400 habitantes.

Óscar, enfim, levita. E isto não é um filme de Emir Kusturica.

Como estar perto da violência frondosa destas figuras que aparecem em É na Terra, não é na Lua? Observando um mundo a acontecer: olhos arregalados, sim, mas o assombro verbalizado por sussurros perante essa expansão. É o que fazem Gonçalo Tocha e Dídio Pestana (nos sons), foi isso que fizeram ao logo dos quatro anos, dois de filmagens, outros tantos de montagem, que os levaram até ao que é hoje É na Terra, não é na Lua. Como se, para estarem à altura da narrativa primordial que se desenrolava à sua frente (diz uma silhueta de navegador no prólogo que prepara a entrada num mundo misterioso: “Les Azores, c''est fou! Et là [ilha do Corvo] c'est encore plus fou!”, e isto podia ser o início de King Kong), Gonçalo e Dídio tivessem de estabelecer um pacto com essa ilha.

Por um lado, entrando nela como exploradores - até, e há nisso um pudor perante o colossal, trocando entre si diálogos que poderiam ser o relato de uma ingénua expedição perdida numa hipótese de found footage ou de livro de aventuras por escrever - como as crianças, repetem o que um livro de histórias lhes narrou para melhor integrarem o assombro.

Por outro, nunca derrubando as fronteiras do mito (“Quer mais mentiras? Quer?”, pergunta o homem que ainda sonha com as baleias que já não vê), recusando colocar uma “verdade”, diríamos “televisiva”, no lugar das oito mil entradas do desaparecido diário sobre a ilha.

É na Terra, não é na Lua está sempre - postais, fotografias antigas, sombras dos homens das imagens e dos sons na paisagem... - a querer habitar, pedindo licença para isso, um território de neblina que nunca se lhe entrega. Quer mais mentiras? Quer? Só pode aceitar o que a ilha, como um vulcão, lhe atira. O barrete que Inês Inês vai tricotando para Tocha não é só metáfora da construção do “documentário”. Ou da aceitação do duo pelas gentes da ilha. É, mais decisivo do que isso, a prova física de que ali estiveram, nesse território só acessível pelo sortilégio - como em Brigadoon, de Vincente Minnelli. É a prova de que a ilha existe na imaginação.

É um filme único num território de filmes únicos - este, o português. Podemos levar à letra: Tocha, 32 anos, disse numa entrevista a este jornal que não sabe se fará outro a seguir. Dissera o mesmo em 2007, na altura de Balaou. O facto de depois dessa estreia ter realizado de novo não o desmente: o seu lugar como “cineasta” parece ter sempre como possibilidade e limite a descoberta - enquanto durar... O barrete azul é isso: o horizonte do fim.

Com este filme estamos na lua.