Há um mundo no ukulele de Rita Braga

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Acabou de chegar de uma digressão pela Alemanha, França e Espanha. E todos os anos anda em concertos pelos EUA. Por onde quer que passe parece atrair músicos, cineastas, performers CLAUDE CARDENAS

É irresistível. Ela de fato masculino, atrás de um bigode postiço, lançando murros à câmara e cantando o "Ramblin' man" de Hank Williams em Chinatown. Continua irresistível: ela com o obrigatório ukelele e a obrigatória franja, de vestido e colar de pérolas, cantando "Under the moon", uma canção de romantismo e beleza clássica, clarinete incluído, de lá atrás, anos 1930. Filmada a preto e branco, canta entre cactos de deserto e as imagens dela são entrecortadas com o bailado divertido e cativante de desenhos animados com traço de Max Fleischer, o criador de Betty Boop. Ela, que é irresistível naqueles vídeos, chama-se Rita Braga. Fomo-la vendo e ouvindo ao longo dos últimos anos, em palco ou em EPs, tocando canções dos quatro cantos do mundo vertidas em ukulele, cantando em colaborações como a que assinou em "Femina", de Legendary Tiger Man. Agora, por fim, um álbum. Viagem geográfica e temporal guiada pela voz sonhadora desta cantora que poderemos ver ao vivo no Teatro do Bairro, em Lisboa, no dia 15, data da apresentação do álbum, "Cherries That Went To The Police".

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É irresistível. Ela de fato masculino, atrás de um bigode postiço, lançando murros à câmara e cantando o "Ramblin' man" de Hank Williams em Chinatown. Continua irresistível: ela com o obrigatório ukelele e a obrigatória franja, de vestido e colar de pérolas, cantando "Under the moon", uma canção de romantismo e beleza clássica, clarinete incluído, de lá atrás, anos 1930. Filmada a preto e branco, canta entre cactos de deserto e as imagens dela são entrecortadas com o bailado divertido e cativante de desenhos animados com traço de Max Fleischer, o criador de Betty Boop. Ela, que é irresistível naqueles vídeos, chama-se Rita Braga. Fomo-la vendo e ouvindo ao longo dos últimos anos, em palco ou em EPs, tocando canções dos quatro cantos do mundo vertidas em ukulele, cantando em colaborações como a que assinou em "Femina", de Legendary Tiger Man. Agora, por fim, um álbum. Viagem geográfica e temporal guiada pela voz sonhadora desta cantora que poderemos ver ao vivo no Teatro do Bairro, em Lisboa, no dia 15, data da apresentação do álbum, "Cherries That Went To The Police".

Apaixonada pela BD e pela ilustração - já o avô e o bisavô Braga faziam fanzines humorísticas nas primeiras décadas do século XX -, começou musicalmente pelo piano, que estudou até aos 15 anos. Passou para a guitarra e haveria de apaixonar-se pelo som e pela portabilidade do pequeno ukulele - "acho que [a paixão] nasceu dos filmes de animação, [onde] está muito presente". É um instrumento que serve bem a sua personalidade. "A minha vida tem sido saltitante", ri-se logo a início da entrevista. "É uma boa maneira de começar [a conversa]". De facto: Ukulele, no havaiano que nomeou o instrumento levado até à ilha do Pacífico por madeirenses, significa "pulga saltitante". E Rita Braga salta muito, viaja muito.

Saltimbanca empreendedora

Acabou de chegar de uma digressão que a levou à Alemanha, a França e a Espanha. E todos os anos anda em concertos pelos EUA, de leste a oeste, de Nova Iorque a São Francisco. E já viveu na Sérvia e por onde quer que passe parece atrair músicos, cineastas, performers ou ilustradores que não demoram a planear trabalhos em conjunto. Exemplo 1: em São Francisco, onde andou a tocar em "variety shows e burlescos", com "números de circo, muita gente a tocar ukulele, muita gente a gostar dos anos 1920 e muita cultura experimental", conheceu um fotógrafo e videasta chamado Claude Cardinas e, quando deu por ela, estava a protagonizar a curta "Wander", filme mudo para o qual compõe neste momento a banda sonora. Exemplo 2: olhamos para a ficha técnica de "Cherries That Went To The Police" e estão lá Bernardo Devlin, dos Osso Exótico, Rui Dâmaso, dos Loosers, ou o contrabaixista Hernâni Faustino, que encontramos, por exemplo, nos RED Trio, mas também Chris Carlone, o americano com quem tem o duo Chips & Salsa, Nik Phelps, músico com Tom Waits e Frank Zappa no currículo, que até conheceu no Monstra, o festival de animação de Lisboa, os belgas Jef Hogan-Buffa e Yvette Dudoit ou o habitante de Buenos Aires Ignatz B - a capa, essa, é da autoria do artista sérvio Aleksandr Zograf.

Rita Braga é, digamos, uma saltimbanca empreendedora - "nos Estados Unidos costumam definir-me como vaudeville", dirá mesmo no final da entrevista - e o seu talento e entusiasmo cativam à sua passagem. A música que faz, de resto, revela tudo isso: o talento, o entusiasmo, o desejo de mundo.

Em "Cherries That Went to the Police", começamos "In a chinese temple garden", passamos pela Rússia de "Katyusha", pelos Açores de "A lira", pelos Estados Unidos de Hank Williams ("Ramblin' man", pois claro) e, quase no final, saltamos até à rebetika grega em "Mes' tou manthou ton teke". Todas versões de canções que foi descobrindo em "rádios independentes da internet", em filmes, em discos que comprou porque a capa lhe chamou a atenção. Nada aqui, porém, se enquadra no que definimos como tradicional. Rita, que é a primeira a confessar que a música anglo-saxónica dos anos 1920, por exemplo, "é incrível" - "muito pop, muito catchy", com o apelo intemporal dos standards -, é demasiado irrequieta para isso. E por isso ouve-se guitarra slide em "A lira", canção tradicional açoriana, ou um ar "western spaguetti" em "Katyusha", lamento de uma mulher russa pelo amante combatendo na Segunda Guerra Mundial. Nela alia-se a curiosidade à criatividade: "Tenho muita curiosidade em conhecer novas músicas e novos terrenos, mas não faço abordagens formais. Desenvolve-se um lado criativo, ao tocar e discutir esse repertório de uma forma não tradicional". E mais: "Há um lado cómico em descontextualizar as coisas [como faz em ‘Katyusha']". Continua: "Pouca gente repara, mas na contracapa do meu disco está uma imagem muito cândida. É uma ilustração sérvia da [época da] Segunda Guerra Mundial, com uma mãe e um filho, e ela está a oferecer-lhe em tanque de guerra".

Rita Braga toca canções antigas - a mais recente é "Rockin' back inside my heart", de Angelo Badalmenti e David Lynch, cantada por Julee Cruise -, mas nada há de arqueologia no acto. "O que faço também acaba por ser contemporâneo", defende-se sem que a música precise de defesa. Porque ao ouvir o que ela faz, esta recontextualização de músicas antigas de décadas e distantes em geografia, insuflando-lhes humor, descobrindo pontes entre linguagens musicais diversas, fazendo incidir sobre elas uma nova luz, a questão da contemporaneidade é insignificante.

O irresistível sonho romântico de "Under the moon", os mistérios encantatórios de "Mes' tou manthou ton teke" (fala de músicos numa tenda grega de haxixe e da polícia que se aproxima) ou a irrequietude de "Ramblin' man", tocados assim, com esta graça e vitalidade, não precisam de qualquer caução cronológica. Não sabemos por onde irá Rita Braga no futuro - um álbum dedicado a Bollywood?; um disco de canções originais?; o filme de animação que sonha realizar um dia? Sabemos que este presente nos preenche a alma.