É a economia, estúpido

Já o dissemos, repetimo-lo: o cineasta mais vital a trabalhar hoje em Hollywood chama-se Steven Soderbergh. Não porque todos os seus filmes sejam igualmente notáveis - não são - nem porque a sua carreira seja imaculada - não é. É precisamente pelas razões opostas: porque não tem medo de correr riscos e de se estampar, porque não faz dois filmes iguais, porque o que o motiva não é o carreirismo mas sim fazer cinema - e não lhe custa nada alternar um bombom de estúdio como a série dos "Ocean''s Eleven", uma "fita de Óscar" como "Erin Brockovich", uma experiência retro como "O Bom Alemão" ou um épico intimista como "Che".

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Já o dissemos, repetimo-lo: o cineasta mais vital a trabalhar hoje em Hollywood chama-se Steven Soderbergh. Não porque todos os seus filmes sejam igualmente notáveis - não são - nem porque a sua carreira seja imaculada - não é. É precisamente pelas razões opostas: porque não tem medo de correr riscos e de se estampar, porque não faz dois filmes iguais, porque o que o motiva não é o carreirismo mas sim fazer cinema - e não lhe custa nada alternar um bombom de estúdio como a série dos "Ocean''s Eleven", uma "fita de Óscar" como "Erin Brockovich", uma experiência retro como "O Bom Alemão" ou um épico intimista como "Che".


"Confissões de uma Namorada de Serviço" é uma das suas experiências mais recentes. Rodado e estreado entre o díptico dedicado a Che Guevara e a sua comédia escarninha de estúdio "O Delator", é a segunda de um "pacote" de seis experiências de baixo orçamento rodadas em digital acordadas com a Magnolia Pictures para lançamento simultâneo em sala, DVD e "video-on-demand" (nos EUA, claro). Mereceu mais atenção do que a anterior, "Bubble" (2005), que em Portugal foi enviada para DVD sem passar pela sala (destino que durante muito tempo parecia ser o de "Confissões de uma Namorada de Serviço", face ao evidente desinteresse de uma distribuidora que leva dois anos para o colocar em sala). À imagem de "Bubble", também este filme é um objecto semi-improvisado ("improvisação estruturada", chama-lhe Soderbergh) com actores não profissionais - e a sua mensagem não podia ser mais simples: "it''s the economy, stupid".

Este filme, aparentemente sobre o quotidiano de uma "call-girl" nova-iorquina de luxo, é na verdade um olhar clínico sobre uma sociedade de consumo onde tudo, mesmo o afecto, talvez até o amor, é objecto de troca e negócio. Chelsea, a "namorada de serviço" do título português, pode vender o seu corpo, mas todos à sua volta não são melhores que ela: querem vender ou comprar qualquer coisa - é o namorado, instrutor de ginásio que persegue o graal da independência financeira, o "conhecedor erótico" de um site internet que quer vender a sua reputação. Soderbergh filma o que significa gostar de alguém pelo meio de um jogo de espelhos luxuosos, numa Nova Iorque rarefeita de hotéis de cinco estrelas, restaurantes da moda e roupas de luxo - desintegrando e atomizando a narrativa ao trabalhá-lo como um quebra-cabeças onde as peças são apresentadas fora da ordem mas onde o resultado não é realmente alterado pela desordenação dos factores. E pergunta, também, se ainda há espaço no mundo em que vivemos para a simplicidade e para a sinceridade do afecto - uma pergunta a que o próprio desenrolar da trama acaba por dar uma resposta lúcida.

"Confissões de uma Namorada de Serviço" foi rodado durante o desastre de Wall Street de 2008 e isso apenas sublinha duplamente como o sexo e a titilação de ter Sasha Grey, ela própria estrela de filmes porno, como actriz do seu filme não é de todo o que interessa Soderbergh. O sexo é, aqui, enfrentado com uma naturalidade que escapa a todas as simplificações, como apenas mais uma mercadoria no meio de todas aquelas que constroem a economia moderna, verdadeiro tema do filme. E o que interessa ao realizador acaba, também, por ser o mesmo que lhe interessa sempre: pegar num género hollywoodiano (no caso, o drama do casal em crise), desconstrui-lo e remontá-lo para encontrar um outro percurso, um outro modo de o contar. É por isso que Steven Soderbergh continua a ser o mais vital dos cineastas americanos - porque continua à procura de qualquer coisa numa paisagem cinematográfica em que a maior parte das pessoas preferem encontrar o que já conhecem.