Crítica: Os solenes fantasmas de PJ Harvey

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PJ Harvey ocupou o palco com uma discrição sempre presente Pedro Cunha

PJ Harvey foi em tempos idos rock’n’roller de saltos altos, mulher de vísceras expostas sobre gravilha sonora arrancada ao blues. PJ Harvey não é há muito essa mulher. Sabíamo-lo pelos menos desde “White Chalk”, álbum de 2007 feito de fragilidades ao piano e voz subindo a escala até uns agudos que não lhe conhecíamos. “Let England Shake” surgiu este ano para o confirmar definitivamente. É um álbum de sangue e vísceras, mas não é catarse ou provocação. É sangue de corpos tombados na eterna carnificina da guerra e foi a PJ Harvey que os canta que vimos ontem na Aula Magna, no primeiro dos dois concertos esgotados na sala lisboeta.

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PJ Harvey foi em tempos idos rock’n’roller de saltos altos, mulher de vísceras expostas sobre gravilha sonora arrancada ao blues. PJ Harvey não é há muito essa mulher. Sabíamo-lo pelos menos desde “White Chalk”, álbum de 2007 feito de fragilidades ao piano e voz subindo a escala até uns agudos que não lhe conhecíamos. “Let England Shake” surgiu este ano para o confirmar definitivamente. É um álbum de sangue e vísceras, mas não é catarse ou provocação. É sangue de corpos tombados na eterna carnificina da guerra e foi a PJ Harvey que os canta que vimos ontem na Aula Magna, no primeiro dos dois concertos esgotados na sala lisboeta.

Com toda uma outra elegância no vestido negro e penacho na cabeça, ocupou o palco com uma discrição sempre presente – impossível desviar o olhar daquela figura esfíngica que caminhava vagarosamente, séria e impenetrável, sem trocar qualquer palavra com o público para além do rápido agradecimento pré encore e da apresentação de banda que se seguiu ao regresso a palco. Não podia ser de outra maneira.

Como montar o habitual circo rock de palmas a compasso e manifestações de apreço quando se cantavam canções de morte e desespero, quando ouvíamos “death was everywhere”, o primeiro verso de “All and everyone”, quando chegava essa tremenda “The colour of the earth” que tem a solenidade de folk perdida nos tempos e a violência da pior das dores, a impotência e a culpa que se funda para não desaparecer jamais – um homem e um campo de batalha: “Louis was my best friend [...] and I never saw him again”.

Estranho contraste aquele na Aula Magna. A sala invadida por um calor quase tropical, leques abanando e público suando em bica, enquanto no palco, PJ Harvey, acompanhada pelos inevitáveis John Parish (companheiro de longuíssima data, na guitarra e teclas) e pelo Bad Seeds Mick Harvey (guitarras, teclas, baixo) e pelo baterista Jean Marc-Butty, surgia como feiticeira de mitologia inventada, como anjo vingador em queda vinda de terras gélidas a norte – imagem acentuada pela auto-harpa encostada ao peito com que iniciou o concerto, interpretando o tema título do último álbum.

“Let England Shake” é uma obra maior no percurso da cantora de Dorset. É música densa habitada por alma folk assombrada, atravessada por fantasmas que se materializam, “samplados”, ao longo das canções. Ao vivo, porém, tudo se torna mais simples e transparente, sem a névoa de mistério conseguida em estúdio – o que acaba por criar um certo distanciamento, o que desvanece mais do que desejaríamos o peso das imagens que as canções evocam (essa foi, de resto, a grande mácula no concerto).

O público manteve-se reverencialmente silencioso enquanto se ouviam as canções, reservando aplausos emocionados para o final de cada uma delas. Aqui e ali, quais fogachos de descontracção num concerto envolto em aura de solenidade e totalmente centrado em “Let England Shake”, ouviram-se grasnares de corvo (dedicado ao vestido negro de Harvey?), ouviu-se um “you are beautiful” que não deixou dúvidas quanto ao destinatário.

Pelo concerto passaram “Written in the forehead”, PJ Harvey à guitarra eléctrica pela primeira vez, e aquele curioso contraste entre o rock minimalista e as vozes jamaicanas sampladas (“Let it burn”, ouve-se), ou “The glorious land” e as suas trombetas militares que colidem com as guitarras afogadas em reverberação, num turbilhão que avança, conturbado, amaldiçoado: “What is the glorious fruit of our land? / Its fruit is deformed children”.

Ao passado, foram resgatadas canções que, mais que recordar os momentos mais célebres da carreira, se adequassem ao ambiente do último disco. “The sky lit up” e “The river”, mais impetuosas e corroídas por electricidade, suscitaram os aplausos generosos de quem tem ainda bem presente o 1998 de “Is This Desire?” – o mesmo aconteceria quando se ouviu a última nota de “C’mon Billy”, de “To Bring You My Love”. Despediu-se com “The colour of the earth” e agradeceu pela primeira vez. No regresso, apresentou a banda e agradeceu novamente.

Chega “Big exit” e, pela primeira e única vez, ouvem-se palmas a acompanhar. Da plateia ouvem-se vários pedidos – “To bring you my love”, grita alguém. PJ Harvey, naturalmente, não acede a nenhum deles. “Angelene”, primeiro, e “Silence” por fim, balada com piano Rhodes e voz majestosa e imponente.

“Silence, silence, silence”, canta. Cai o pano. Calamo-nos. Aplaudindo de pé um bom concerto, não um concerto magistral como o álbum que o suportou.