Análise: O Discurso do Rei, ou o regresso do último magnata

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"O Discurso do Rei" Foto: DR

A história de Jorge VI, o príncipe gago que ultrapassa as suas dúvidas e limitações para se tornar o rei que Inglaterra merecia, é também a história do regresso triunfal de Harvey Weinstein, o "último magnata" do cinema americano. E o sucesso do filme e as suas doze nomeações para os Óscares são o renascimento de um produtor que conhece o público e a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood como a palma da mão e sabe como lhes falar ao coração.

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A história de Jorge VI, o príncipe gago que ultrapassa as suas dúvidas e limitações para se tornar o rei que Inglaterra merecia, é também a história do regresso triunfal de Harvey Weinstein, o "último magnata" do cinema americano. E o sucesso do filme e as suas doze nomeações para os Óscares são o renascimento de um produtor que conhece o público e a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood como a palma da mão e sabe como lhes falar ao coração.

Mais do que declarações de virtuosismo estilístico ou provas de originalidade formal, a Academia gosta de premiar na continuidade e não na ruptura; é formada por técnicos e actores, gente que reconhece trabalho bem feito mais do que uma mudança de paradigma. Os Óscares adoram filmes biográficos e actores que recriam personagens reais (Jamie Foxx como Ray Charles, Marion Cotillard como Édith Piaf, Nicole Kidman como Virginia Woolf). Os Óscares preferem, mais do que grandes êxitos comerciais, comédias ou filmes de género, filmes "de prestígio", "adultos", onde tudo está muito bem feito, en su sitio. Um tipo de cinema que reenvia para a Hollywood da época clássica, para os anos de ouro do sistema de estúdios, e reflecte, numa paisagem de produção estilhaçada onde estes estão mais interessados em "franchises" ou obras dirigidas aos todo-poderosos adolescentes, a saudade de um certo filme adulto e inteligente que praticamente desapareceu da produção oficial.

Foi precisamente nesse cantinho abandonado que Harvey Weinstein montou estaminé com o irmão Bob e a sua Miramax Films, que começara como distribuidora independente e apostara em jovens cineastas como Quentin Tarantino, Steven Soderbergh ou Kevin Smith. Weinstein, figura truculenta e colorida que é o mais próximo que o cinema americano tem hoje dos grandes produtores que fundaram Hollywood, percebeu muito cedo que esse filme adulto de prestígio não estava a ser produzido pelos estúdios e que havia um público que não estava a ser servido.

O que daí resultou foi uma máquina de produção apontada ao coração dos Óscares, apoiada por campanhas de marketing extremamente bem-dirigidas que garantiram aos filmes do estúdio presença regular entre os nomeados. A partir de O Paciente Inglês de Anthony Minghella (1996), a Miramax tornou-se o "guardião" oficial deste tipo de produções e uma potência quase invencível na época dos Óscares. A Paixão de Shakespeare, Regras da Casa, O Talentoso Mr. Ripley, Chocolate, Iris, As Horas, Chicago, Cold Mountain são apenas alguns dos títulos que, entre 1996 e 2005, Harvey Weinstein colocou na corrida dos Óscares.

Ao fazê-lo, reinventou o negócio, levando as majors a criar divisões especializadas para produzir e distribuir filmes de prestígio, mas também desvalorizando o conceito de cinema independente ao ponto de ele deixar de fazer sentido em termos de produção americana.

Não há fome que não dê em fartura e Weinstein acabaria por ser engolido pela voragem do processo que criara: depois de vender a Miramax à Disney em 2003, saiu em 2005 para lançar a Weinstein Company, com a qual fez uma longa travessia do deserto até o sucesso dos Sacanas sem Lei de Tarantino e uma nova injecção de capital terem dado um novo impulso à firma.

O Discurso do Rei, que traz todas as marcas registadas do "filme de Óscares" que Weinstein se empenhou em produzir e distribuir durante anos, é a prova mais visível desse renascimento: o primeiro passo na potencial ascensão da Weinstein Company ao velho patamar da Miramax (que, entretanto, se encontra num limbo legal, vendida pela Disney depois de uma lenta agonia).

As doze nomeações de O Discurso do Rei são a prova de que Harvey Weinstein continua a saber o que Hollywood e a Academia querem. E, mesmo que o filme não as leve todas para casa, Weinstein já ganhou esta noite.