Irving Kirsch: "O ideal seria usar placebos sem mentir aos doentes"

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Irving Kirsch PÚBLICO

Ao longo dos anos, foi chamado pela Food and Drug Administration norte-americana para testemunhar sobre os efeitos indesejáveis dos anti-depressivos nos adolescentes; pelo NICE (Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica britânico) quando se tratou de elaborar novas directivas de tratamento dos doentes com depressão no âmbito do Serviço Nacional de Saúde daquele país; e até pelas próprias companhias farmacêuticas, que solicitaram a sua ajuda em relação aos ensaios clínicos.

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Ao longo dos anos, foi chamado pela Food and Drug Administration norte-americana para testemunhar sobre os efeitos indesejáveis dos anti-depressivos nos adolescentes; pelo NICE (Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica britânico) quando se tratou de elaborar novas directivas de tratamento dos doentes com depressão no âmbito do Serviço Nacional de Saúde daquele país; e até pelas próprias companhias farmacêuticas, que solicitaram a sua ajuda em relação aos ensaios clínicos.

Irving Kirsch esteve há uns dias em Lisboa a dar uma aula no ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada) sobre o poder do efeito placebo. O P2 aproveitou para falar com ele do seu trabalho, que começou há mais de dez anos e levou-o a concluir que os anti-depressivos não tratam a depressão.

Quando a sua equipa anunciou em 2008 que os anti-depressivos não eram mais eficazes do que um placebo, gerou-se um tsunami mediático. Já trabalhavam nisso há muito tempo?

Na realidade, andávamos nisto há dez anos e esta era a nossa terceira análise da literatura sobre os anti-depressivos. A primeira fizemo-la em 1998. No início, o que me interessava não eram os anti-depressivos, mas o efeito placebo. Pensava que tinha de haver um efeito placebo na depressão e estava à procura de estudos em que os doentes tivessem sido seguidos depois de terem feito um tratamento com placebo.


Claro que como todos esses estudos eram ensaios de medicamentos, outros participantes tinham recebido diversas drogas. Por isso, quando analisámos os resultados relativos ao placebo, também tínhamos à nossa disposição os resultados das substâncias activas.


Tal como previsto, observámos um forte efeito placebo. Mas ao mesmo tempo, descobrimos que a diferença entre o efeito do medicamento e o efeito do placebo era muito inferior ao que poderíamos ter imaginado. Para mim, isso foi uma total surpresa.


Quando publicámos essa meta-análise [uma meta-análise é uma análise conjunta de todos os estudos existentes], gerou-se bastante controvérsia, com as pessoas a dizerem que não era possível, que tínhamos sem dúvida cometido algum erro, que outros estudos chegariam a conclusões diferentes.


E então?

Isso levou-nos a fazer uma segunda meta-análise. Mas, desta vez, fomos ter com a FDA [a Food and Drug Administration, a agência federal norte-americana responsável pela aprovação dos medicamentos] e eles deram-nos todos os resultados que tinham. Foi muito importante, porque eram os dados que as companhias farmacêuticas tinham enviado à FDA para fazer aprovar os seus medicamentos. E a FDA requeria que mandassem os resultados de todos os ensaios clínicos realizados – não apenas os dos estudos publicados, mas também dos ensaios que nunca tinham sido divulgados. Foi assim que descobrimos que 40 por cento dos ensaios tinham permanecido escondidos. E mais: que a maioria deles não mostrava qualquer diferença significativa entre medicamentos e placebo.


Quando a seguir analisámos a totalidade dos ensaios – os publicados e os não publicados – descobrimos que a diferença entre medicamentos e placebo era ainda mais pequena do que na nossa primeira análise. Ao ponto de ser clinicamente irrelevante.


Foi em que ano?

Em 2002. Pensou-se então que talvez as pessoas que tinham participado nos ensaios não estivessem suficientemente deprimidas – e que, olhando apenas para as mais deprimidas, o efeito do medicamento seria maior. Voltámos ao mesmo conjunto de dados (os dos ensaios publicados e não publicados) e analisámos a gravidade da depressão dos doentes. Só encontrámos um ensaio clínico em doentes com depressão moderada, onde não havia aliás qualquer diferença entre o medicamento e o placebo. O resto dos ensaios tinha sido feito em doentes com depressões muito graves e, em média, a diferença entre o efeito dos medicamentos e o do placebo não era clinicamente significativa. Esta foi a conclusão que publicámos em 2008.


As meta-análises não têm certas limitações? Juntam estudos que não são necessariamente comparáveis.

As meta-análises são a melhor maneira de fazer a síntese dos dados vindos de um grande número de estudos. De qualquer forma, nas que nós fizemos com os dados do FDA tínhamos uma série de vantagens que tornavam o problema ainda menos relevante, porque a FDA exigia que todos os estudos fossem feitos com critérios idênticos e com exactamente a mesma maneira de medir a depressão. E todos tinham tido uma avaliação da qualidade. Portanto, os estudos que analisámos – publicados ou não – não apresentavam problemas de comparação.


O efeito placebo parece ser muito poderoso.

É. E para mais é inócuo, desprovido de efeitos secundários e não custa dinheiro.


Há quem diga que parte do efeito terapêutico provém do elevado preço do medicamento. O que pensa disso?

Felizmente, o efeito do preço é pequeno, portanto não é muito preocupante.


Ao dizer às pessoas que é o efeito placebo que está a aliviar os seus sintomas depressivos, não há o risco de minar a “fé” que faz com que o efeito placebo exista?

Haveria um dilema se não houvesse alternativas. Mas há muitas. Quando existe um forte efeito placebo, como acontece na depressão, significa que há muitas coisas que funcionam. No caso da depressão, o melhor exemplo é um tipo de psicoterapia de curta duração, a terapia cognitivo-comportamental [TCC].


A terapia cognitivo-comportamental dura habitualmente 15 a 20 semanas. A curto prazo, produz resultados tão bons como os anti-depressivos: um pouco melhores do que os placebos, mas não muito mais. Mas a longo prazo, a diferença é notável. A maior parte das pessoas que tomam anti-depressivos melhoram, deixam de os tomar e tornam a ficar deprimidas. Pelo contrário, 10 a 20 sessões de terapia cognitivo-comportamental evitam as recaídas.


O estudo mais longo que conheço – e é mesmo invulgar estudar pessoas durante um período de tempo tão alargado – acompanhou os participantes durante seis anos. E constatou-se que, ao fim deste tempo, a maioria das pessoas que tinham tido 10 sessões não tinha voltado a cair na depressão.


Todos os participantes começaram por tomar anti-depressivos. Depois pararam de os tomar e metade deles tiveram 10 sessões de terapia cognitivo-comportamental, enquanto a outra metade teve 10 sessões de apoio emocional, cuidados, atenção acrescida por parte do médico, mas sem os componentes específicos da TCC. Seis meses mais tarde, 90 por cento dos que tinham tido cuidados convencionais sem esses componentes específicos tinham tido uma recaída – mas isso apenas tinha acontecido a 40 por cento dos que tinham feito uma TCC. É um resultado muito notável.


Em que consiste a TCC? É uma abordagem psicoterapêutica que ensina as pessoas a gerir a ansiedade e o stress?

Sim, mas também a depressão, a tristeza. Aprendem a lidar com os factores de stress na sua vida, a utilizar certas ferramentas para contrariar alguns dos seus próprios padrões de pensamento de forma a conseguiram reagir às situações de maneira diferente. A depressão é muitas vezes desencadeada pelo stress da vida quotidiana, pelo desemprego, pela pobreza, pelo preço do imobiliário, pela perda de pessoas chegadas, etc. Em geral, existem causas reais para a depressão. A TCC, quando é bem aplicada, ajuda as pessoas a lidar de maneira mais eficaz com o stress.


A longo prazo, é muito mais barata que a medicaçao anti-depressiva. Uma das coisas que o governo británico está a fazer neste momento é treinar novos terapeutas que vão ser pagos pelo serviço nacional de saúde para fazer TCC a doentes deprimidos. E uma das razões pelas quais estão a fazê-lo – para além do facto que parece funcionar a longo prazo – é que é efectivamente mais barato do que manter as pessoas a tomar anti-depressivos – porque para tentar prevenir as recaídas, as pessoas têm de continuar a tomar os medicamentos.


Fizeram uma análise custo-benefício e concluíram que o custo inicial da psicoterapia é maior. Mas ela só dura 15 a 20 semanas e, passados nove meses, os custos são equivalentes ao dos medicamentos. A partirt daí, a psicoterapia torna-se mais barata em relação à medicação continuada.


Você contribuiu para esta mudança de atitude no Reino Unido?

Não sei se contribui muito, não gosto de exagerar o meu papel. Sei que o que provocou essa mudança foram as novas directivas de tratamento, publicadas em 2004, pelo Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica [britânico], o NICE. Eles tinham-me consultado durante o processo de elaboração e no seu relatório citavam e descreviam as duas meta-análises que eu tinha realizado até a essa altura.


Também fizeram a sua própria meta-análise, mas na altura – e isto também vem no relatório – era muito difícil distinguir, nos ficheiros da FDA, quais os estudos que tinham sido publicados e quais os que não tinham. Como as companhias farmacêuticas se recusavam a cooperar nessa identificação e o NICE tinha prazos apertados, eles apenas utilizaram os estudos publicados na literatura. Mesmo assim, a conclusão deles foi muito semelhante à minha.


Concluíram que, para os doentes moderadamente deprimidos, a melhor opção seria sem dúvida uma psicoterapia de curta duração. Para as depressões mais graves, talvez uma combinação de psicoterapia e de medicamentos anti-depressivos. Seja como for, isso significava que devia haver uma maior oferta de tratamentos psicoterapêuticos que fossem mais abordáveis em termos económicos.


Foi também nessa altura que Lord Layard, da London School of Economics, fez a sua análise custo-benefício – tinha havido uma nos EUA e ele fez uma no Reino Unido e chegou às mesmas conclusões. E. no seu relatório ao governo britânico, dizia essencialmente que. se fossem treinados terapeutas para quem os médicos de família pudessem, através do NHS [Serviço Nacional de Saúde britânico], reencaminhar os doentes com depressão, o tratamento seria melhor e estaria mais em sintonia com as directivas oficiais de tratamento do NICE. E seria rentável, acabando de facto por poupar dinheiro. Directamente, porque o custo a longo prazo do tratamento seria inferior, e indirectamente porque haveria uma menor perda de produtividade no trabalho.


Mas se o NICE disse que nalguns casos era preciso uma combinação de psicoterapia e medicamentos. Não descartou um efeito dos anti-depressivos.

Exacto. Mas, mais uma vez, a análise que eles fizeram foi limitada aos estudos publicados, por razões de tempo. Ora, quando olhamos para a literatura não publicada, o que vemos é que as pessoas nas quais os anti-depressivos produzem um efeito clinicamente signiticativo não são aquelas que têm depressões graves, mas aquelas que estão no extremo mais grave das depressões muito graves. Eu diria que isso não ultrapassa 10 por cento das pessoas a quem são receitados medicamentos anti-depressivos. Talvez para essas pessoas exista um reforço clinicamente significativo para além do efeito placebo.


O efeito placebo parece difícil de usar. Os médicos poderiam dar placebo aos doentes sem lhes dizer, mas isso não seria ético.

Pois não. Seria fantástico poder usá-lo, mas temos esse dilema ético. Na minha opinião, esse é o próximo item da nossa agenda – e é nisso que eu estou a trabalhar. Com vários colegas, estamos a procurar maneiras de aproveitar o efeito placebo sem enganar as pessoas. Sem ter sequer de mentir por omissão – já para não falar em mentir explicitamente. De forma totalmente aberta.


Pode dar algumas pistas?

Não posso dar pormenores porque estamos na fase em que alguns dos nossos resultados estão a ser avaliados para publicação. Mas o que posso dizer é que estou muito optimista, que penso que vamos encontrar uma maneira de utilizar o efeito placebo sem mentir. Talvez dentro de um ano já possa dizer qualquer coisa. Para mim, a procura de um “placebo não enganador” [non deceptive placebo] é um dos grandes desafios terapêuticos, não só para o tratamento da depressão, mas também da dor, da síndrome do cólon irritável e por aí fora.


O que causa a depressão?

Não sabemos. Sabemos que as pessoas sofrem, que está ligada a mudanças nas circunstâncias de vida e conseguimos prever a incidência da depressão em qualquer sociedade em função das alterações na economia. Portanto, sabemos que está associada causalmente ao stress: quanto maior o stress, maior a taxa de depressões. E sabemos que há alguns tratamentos que funcionam e que há pessoas que não respondem a nenhum tratamento – mas não sabemos porquê.


Há quem responda a um dado tratamento, há quem responda a outro, uma pessoa pode não reagir logo a um tratamento e reagir mais tarde ao mesmo tratamento. Não sabemos porquê. Não conseguimos prever quem irá responder ao placebo, nem quem irá responder aos medicamentos anti-depressivos, nem à terapia, nem a outras abordagens como o exercício físico. (Já agora, a actividade física funciona bem, mas se acrescentarmos um anti-depressivo, o efeito diminui. Há aí uma interferência qualquer, mas essa é outra história.)


O que sabemos é que os medicamentos anti-depressivos que temos não são um tratamento óptimo. Há outros igualmente eficazes e o benefício que os medicamentos permitem não é muito melhor do que o de um placebo para a esmagadora maioria dos doentes com depressão. Têm efeitos secundários, criam dependência e provocam sintomas de abstinência em quem tenta parar de os tomar. E para muita gente, em particular os jovens adultos, fazem aumentar os riscos de suicídio.


Isso está tão bem provado que a FDA tornou obrigatória, em 2004, a inclusão deste risco na documentação que acompanha os anti-depressivos. Aliás, na altura fui chamado a testemunhar nas audiências que levaram a essa decisão. Posso dizer que a massa de resultados é gigantesca e é muito claro que um dos efeitos dos ISRS nas crianças, nos adolescentes e nos jovens adultos é aumentar o risco de suicídio.


Acha que a depressão não se deve a um desequilíbrio químico no cérebro?

Provavelmente não. Não existem quaisquer indícios sólidos que o sugiram. Até posso ir mais longe e dizer que, a ser um desiquilíbrio químico, esse desequilíbrio não pode ser uma deficiência de serotonina. A minha certeza quase aboluta tem a ver com o número de anti-depressivos que possuem acções químicas diferentes.


A maioria dos anti-depressivos visam aumentar os níveis de serotonina no cérebro; são os ISRS (inibidores selectivos da recaptação da serotonina). Outros dizem que agem sobre outros neurotransmissores. E há mesmo um, a tianeptina, vendido sob o nome de Stablon [nomeadamente em Portugal] que, em vez de aumentar os níveis de serotonina disponíveis no cérebro, visa o efeito exactamente oposto, reduzindo a quantidade de serotonina. Se a deficiência de serotonina fosse a causa da depressão, a tianeptina tornaria as pessoas ainda mais deprimidas.


E não é isso que acontece?

O que acontece é o seguinte: com os ISRS, 60 por cento das pessoas com depressão melhora; com anti-depressores sem efeito sobre a serotonina, 60 por cento melhora; com um medicamento de tipo Stablon, 60 por cento melhora. E já agora, se dermos às pessoas uma substância que aumenta a dopamina ou a epinefrina… 60 por cento melhora. Se lhes dermos um calmante de tipo benzodiazepina, 60 por cento melhora. Ou seja, qualquer droga activa com efeitos secundários (que são, já agora, importantes, porque ajudam as pessoas a convencerem-se de que estão a tomar uma droga e não um placebo), a proporção de melhorias é a mesma e não interessa o que tomam.


Essa total independência entre o efeito terapêutico de um medicamento e a sua composição farmacológica tornou muito claro para mim que a depressão não pode ser uma questão de serotonina. Como chamar um anti-depressivo cujos efeitos são completamente independentes da sua acção química? Eu chamo-lhe placebo. [ri-se]


O efeito placebo provém dos efeitos secundários?

Não, isso só acontece nos ensaios duplamente cegos [quando nem o médico nem o doente sabem se o doente está a tomar a substância activa ou o placebo]. Se um médico nos der subrepticiamente um placebo, sem haver qualquer razão para suspeitarmos de que se trata de um placebo, provavelmente não importa se tem ou não efeitos secundários. Mas nos ensaios duplamente cegos é obrigatório informar os participantes de que poderão receber a droga ou o placebo, dizer-lhes que a droga tem alguns efeitos secundários e enumerá-los: boca seca, naúseas, disfunção sexual, toda uma lista. Tem de ser, por razões éticas de consentimento informado.


A seguir, entregamos a droga ou o placebo ao doente e mandámo-lo para casa. E se durante o tratamento o doente começar a sentir a boca seca, vai pensar: “OK, já sei em que grupo é que estou!” [ri-se]


Essas pessoas vão apresentar um efeito maior – estatisticamente significativo, mas clinicamente irrelevante – do medicamento em relação às que tomaram o placebo. Para mim, isto não passa de um efeito placebo aumentado e acontece devido à quebra do protocolo do ensaio causada pela presença de efeitos secundários da substância activa.


Ou seja, os ensaios não são cegos.

Não. E sabemos mesmo até que ponto não são. Não é costume perguntar aos doentes o que acham que receberam, mas num dos poucos estudos onde isso foi feito, 89 por cento dos doentes do grupo que tinha recebido a droga activa respondeu que já sabia. Isto não é nem simplesmente nem duplamente cego, não é cego de todo.


Também é verdade para outras doenças?

Não quero fazer generalizações. Claramente, existem medicamentos que funcionam, que são clinicamente melhores do que um placebo. Há mesmo áreas em que não há efeito placebo: por exemplo, os placebos não afectam os níveis de açúcar no sangue de um doente diabético. E mesmo em relação à dor, onde existe um razoável efeito placebo, muitos medicamentos funcionam muito melhor do que um placebo. Mas é um facto que existe um problema de concepção dos ensaios clínicos de drogas com efeitos secundários, porque não são realmente cegos. E isso é algo que precisamos de trabalhar.


É preciso repensar todo o processo de aprovação de medicamentos?

Sim. Mas, no imediato, existe uma opção muito mais fácil de pôr em prática, que consistira em exigir que em qualquer ensaio duplamente cego, antes de revelar ao doente o que tomou, se lhe pergunte o que pensa que tomou e se registe a sua resposta.


As companhias farmacêuticas recusam-se a fazê-lo e só o farão se forem obrigadas a isso para poderem fazer aprovar os seus medicamentos. Não lhes custaria um cêntimo adicional e, para mais, fornecer-nos-ia uma base sólida para decidirmos até que ponto temos de repensar o processo conforme as áreas. Pelo menos ficaríamos a saber qual é a dimensão do problema.


Nos EUA, a FDA mostra-se disposta a obrigar os laboratórios a fazer este tipo de avaliação?

Já os obrigam a fazer ensaios duplamente cegos, que custam imenso dinheiro – e ainda bem –, então por que não obrigá-los a fazer algo que não lhes custa nada como parte integrante dos ensaios duplamente cegos? Mas ainda não ouvi nada nesse sentido por parte da FDA.


O que tem evoluído no bom sentido é a politica adoptada por certas revistas médicas internacionais.Há uns quatro anos, passaram a ter um registo dos ensaios e decidiram que qualquer estudo enviado para qualquer uma delas sem ter sido previamente registado seria recusado. Tem sido muito eficaz; todas as companhias farmacéuticas passaram a registar os seus ensaios e é possível saber quais são os ensaios em curso. A próxima etapa será exigir a publicação de todos os resultados.


Há uma farmaceutica que foi mesmo obrigada a disponibilizar todos os seus resultados sobre anti-depressivos: a GlaxoSmithKline. Foram processados em 2004 pelo Estado de Nova Iorque por não terem revelado que os ensaios clínicos de anti-depressivos em adolescentes não tinham mostrado diferenças significativas. A GSK teve de pagar uma multa avultada ao Estado de Nova Iorque e também concordou em tornar acessível, num site na Web, os resultados de todos os seus ensaios clínicos de anti-depressivos. Ainda hoje, é a única que o faz. Mas se a FDA dissesse que para uma droga ser aprovada é obrigatório disponibilizar todos os dados online aos cientistas e às agências governamentais competentes nos diversos países, teríamos essa informação.


Ainda há muitos cépticos em relação às suas conclusões?

Ainda há, mas também há uma maior aceitação do ponto de vista que propus. Acho que a situação começou a mudar, mas é um processo lento.


Sei que uns meses depois da nossa meta-análise de 2008 foi feita uma sondagem junto dos médicos britânicos e que 44 por cento declararam que, com base nesses dados, iriam considerar outros métodos para tratar a depressão em vez de receitar medicamentos anti-depressivos. Mas desde então não soubemos mais nada. Seria preciso fazer outra sondagem...


As companhias farmacêuticas sabiam que você tinha razão e tinham ocultado esta realidade?

Absolutamente. Não tenho qualquer dúvida, porque foram eles que mo disseram. A seguir a cada uma das minhas duas primeiras meta-análises, fui consultado por duas farmacêuticas (nunca me recuso a falar com as pessoas). E o que me explicaram foi que não viam razões para tanto alarme, porque todos sabemos que é muito difícil – e parece estar a tornar-se cada vez mais difícil – fazer a distinção entre o efeito dos anti-depressivos e o efeito placebo.


De facto, isso colocava-lhes um grande problema e estavam a tentar encontrar maneiras de tornar os ensaios mais eficientes. Tinham tido uma ideia e queriam saber a minha opinião. A ideia era que, se conseguissem identificar à partida as pessoas susceptíveis de reagir ao placebo, poderiam excluir essas pessoas dos ensaios clínicos, o que facilitaria a detecção de diferenças entre os medicamentos e os placebos. Será que eu os poderia ajudar a construir um questionário para prever as reacções ao efeito placebo?


Qual foi a sua resposta?

Disse-lhes que, tanto quanto sabia, com base na literatura disponível não era possível prever as reacções ao placebo – e que, mesmo sendo possível, não seria de grande utilidade porque ao reduzir-se a resposta ao placebo ir-se-ia provavelmente reduzir também a resposta ao medicamento. Então – isto passou-se na minha segunda visita, a seguir à meta-análise de 2002 – um deles disse-me que mesmo que isso acontecesse, poderia ser melhor para eles. Se pudessem anular quase totalmente o efeito placebo, apesar de a resposta ao medicamento passar de 50 por cento para, digamos, 20 por cento, poderiam concluir que 20 por cento dos doentes tinham melhorado com o medicamento, comparado com nenhum com o placebo. Seria muito melhor para eles! [ri-se]


O que eu acho é que acreditam realmente que os seus medicamentos funcionam. Só que, como estão no negócio de ganhar dinheiro, querem mesmo apresentar as coisas da melhor maneira possível. Pensam que os seus medicamentos resultam, mas que é difícil mostrá-lo nos ensaios clínicos, e procuram soluções para o problema.


Apesar de tudo, poderá haver pessoas que beneficiem realmente destes medicamentos?

Se for esse o caso, então é preciso identificar quem são as pessoas em quem o medicamento tem um efeito real e mostrar que, dando o medicamento a essas pessoas – e não a posteriori – obtém-se uma grande diferença entre o medicamento e o placebo. E, por último, fazer aprovar o medicamento apenas para essas pessoas. Mas as farmacêuticas não querem fazer isso. Esta é apenas a minha opinião, mas quem estaria disposto a comercializar um produto para apenas algumas pessoas se pode fazê-lo para 100 por cento da população?


Aliás, quando o NICE estava a elaborar as suas directivas, pensaram a dada altura que talvez o resultado obtido com um dado medicamento dependesse do sexo do doente. Talvez os ISRS funcionassem melhor nos homens e os tricíclicos [um outro tipo de anti-depressivo] nas mulheres – ou vice-versa. Portanto, pediram às farmacêuticas para lhes mandarem os dados ou para os analisarem elas próprias, para verem se havia algum efeito de género. Todas se recusaram a fazer tanto uma coisa como a outra – recusaram-se a responder ao pedido de uma agência governamental que estava a redigir orientações oficiais! E os dados sobre o sexo dos particiapantes existiam, portanto teria sido fácil fazer o que o NICE pedia quase sem custos adicionais. Bastava reanalisar os dados. Mas não tinham interesse em comercializar um medicamento apenas junto de 50 por cento da população.


Acha que um dia vai ser descoberto um anti-depressivo com uma acção biológica real?

Há um filme do James Bond intitulado Nunca digas nunca [ri-se] Talvez alguém descubra um dia que a Terra é plana. Pessoalmente, duvido que venha a acontecer, mas não o poria totalmente de lado. Diria que a probabilidade de descobrir um anti-depressivo que funcione é maior do que a de descobrir que a Terra é plana [ri-se]. Nunca se sabe, talvez venhamos a descobrir algo de totalmente inesperado. Mas neste momento, não há dados que permitam pensar isso.


De violinista a psicólogo
Você foi músico numa vida anterior.

[ri-se] Ainda sou músico amador, toco violino, gosto imenso.


E nessa vida anterior, também fez um disco sobre o escândalo do Watergate com a revista norte-americana National Lampoon.

Sim, chamava-se The Missing White House Tapes. Primeiro fizemos um single, que chegou a estar no topo das vendas. Eu estava a fazer o doutoramento em psicologia, estávamos em pleno escândalo do Watergate e tínhamos acabado de saber que Nixon tinha gravações das suas conversas na Casa Branca. Co-produzi o single com um amigo meu. Estávamos na minha sala a ouvir na rádio um discurso de dez minutos em que o Nixon explicava por que não ia tornar públicas as gravações – e um de nós comentou que ia acabar por ter de as publicar...


A situação faz lembrar os dados não publicados sobre os anti-depressivos...

Pois, talvez tenha sido aí que tudo começou... A questão é que pensámos que quando Nixon publicasse as gravações, teria tido o tempo suficiente para as manipular. E então decidimos sermos os primeiros a fazê-lo. Ligámos para a estação de rádio pública que tinha difundido o discurso e pedimos-lhes para nos mandarem a gravação do discurso. Pagámos 500 dólares pelo aluguer de um estúdio de gravação e de um engenheiro, pegámos na fita magnética e numa gilete e cortámos e colámos, cortámos e colámos... E o resultado foi uma confissão de quatro minutos durante a qual Nixon dizia coisas como “este foi o melhor encobrimento desde o assassinato do presidente Kennedy”. [ri-se]


Quando quisemos vender a nossa gravação, a maior parte das editoras de discos acharam muito divertido, mas tiveram medo. Como se sentiam culpados por não o fazerem, deixaram-nos usar os seus escritórios, os seus telefones para fazer contactos. E final, a National Lampoon aceitou. Mas eles tinham um acordo com a Blue Thumb Records, à porta dos quais já tínhamos ido bater sem sucesso. Mas a National Lampoon respondeu-nos que não haveria problema desta vez, porque o contrato lhes dava o direito a um single e a um álbum por ano com controlo total do conteúdo.


O single funcionou bem e pediram-nos para o transformar num lado de um álbum, que foi nomeado para os Grammy em 1974, na categoria de Best Comedy Recording. Não ganhámos, mas fomos um dos cinco nomeados, o que foi muito bom.


E por que um violonista decide tornar-se psicólogo?

Sou um bom violonista amador, mas não profissional. Quando andava na universidade a fazer estudos de música, inscrevi-me num curso de psicologia, apaixonei-me por esta disciplina e decidi mudar de carreira. Tornei-me músico amador, que é uma coisa que me dá imenso prazer, e psicólogo profissional, algo que também adoro.