A vitória do escrevinhador

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Mario Vargas Llosa em Calafell na Catalunha em Junho de 1974 Mario Muchnik
Seria totalmente injusto falar de Mario Vargas Llosa, principalmente no momento em que acaba de receber - com o aplauso generalizado - o Prémio Nobel da Literatura, 2010, focando, em primeiro lugar, a sua agradável presença física. No entanto, quando em 2003 fui ao seu encontro para uma entrevista sobre a publicação, em Portugal, do livro O Paraíso na Outra Esquina, não pude deixar de notar o seu ar patrício, a sua afabilidade, o seu inefável sorriso e a sua clara disponibilidade para uma boa conversa (Beleza e inteligência, não é para todos.)

O homem que nasceu no Peru (Arequipa) a 28 de Março de 1936 tem mostrado, ao longo dos anos, o seu carácter, a sua força e a sua tremenda capacidade para contar histórias, ao mesmo tempo que se empenha no debate das ideias e no envolvimento cívico. Na sua qualidade de jornalista, professor, crítico literário, romancista e ensaísta, já recebeu (quase) todas as honras, troféus e prémios, sem, contudo, abrandar a sua incansável actividade, tanto física como intelectual. Desde o tempo em que apoiou Fidel Castro - para mais tarde mostrar a sua desilusão, tal como aconteceu em relação ao seu antigo amigo Gabriel Garcia Marquez - até se candidatar à Presidência do Peru em 1990 pelos liberais- conservadores, um episódio que protagonizou por achar que era um "dever cívico" - a sua derrota foi, em minha opinião, uma das grandes vitórias para a literatura -, Vargas Llosa foi sempre lúcido, crítico e construtor de novas ideias, conseguindo, através de algumas das suas vacilações e reviravoltas ideológicas, melhorar efectivamente a sua perspectiva. Em 2003, com 67 anos, rico, famoso e respeitado em todo o mundo, não hesitou em instalar-se no Iraque para ver de perto e analisar os acontecimentos. O resultado traduziu-se numa série de reportagens publicadas no jornal El Pais - reunidas no livro Diário do Iraque - na qual Llosa, com o vigor e clarividência que o caracterizam, mostra o seu envolvimento nas questões mundiais e na política global. O jornalismo e tudo o que esse mister envolve são, de acordo com as suas palavras, muito importantes por o manterem em consonância com a História, à medida que esta se desenrola. A vida da rua é uma maneira de ele evitar refugiar-se num universo só de fantasia, de imaginação, algo que seduz alguns escritores mas que, para ele, não possui qualquer atractivo. Recorde-se que, por mais de uma vez, nas páginas do El Pais - e não só - Vargas Llosa tem-se insurgido contra aquilo a que chama o "silêncio dos intelectuais espanhóis" em relação ao problema do terrorismo, afirmando que a política não pode ser um pragmatismo puro, tem de englobar a imaginação, o que implica, por parte dos ditos intelectuais, um papel a cumprir. 

Em O Paraíso na Outra Esquina, pretexto para a nossa conversa no dia da entrevista, tal como em toda a sua obra, a beleza e mestria da escrita estão ao serviço das ideias. Mesmo nas passagens mais líricas, mais finamente cinzeladas, mais solidamente edificadas, mais complexamente tecidas, mais ironicamente desvendadas, Vargas Llosa fala-nos de verdades duras e exemplares. O livro, que segue a história de Paul Gauguin e da sua avó, a feminista Flora Tristán (longínqua parente do escritor) é, na realidade, uma parábola que põe em confronto dois conceitos de felicidade: um individual (o paraíso) e outro colectivo (a utopia). 

Muito haverá para dizer sobre este autor que não se coibiu de transpor as suas experiências pessoais para os livros que escreveu. Impossível esquecer a imagem pouco lisonjeira da escola militar Leôncio Prado (na obra de 1962 A Cidade e Os Cães), onde a corrupção da instituição espelha a do seu próprio país; ou Tia Júlia e o Escrevedor (1977) um relato mordaz e inflamado da sua relação com Julia Urquidi, cunhada da sua mãe, com quem acabou por casar, apesar da diferença de idades. As injustiças e imposições de uma sociedade desadequada e desumanizada têm sido o tema central da obra de Vargas Llosa - tanto a nível individual como colectivo e obras como A Casa Verde e A Festa do Chibo são dois dos melhores exemplos das suas inquietações políticas. 

No final da entrevista de 2003, quando ainda se falava num mundo mais ou menos pacífico e próspero, o escritor afirmou: "Mantemos a nostalgia dessa sociedade perfeita com a qual se inicia a nossa cultura. Nós começámos com a ideia de um paraíso que perdemos. A nossa busca é um retorno a essa idade de ouro a cuja perda nunca nos resignamos. Todas as grandes religiões prometem o éden, tal como as grandes ideologias. Com a diferença de que estas últimas nos prometem o paraíso nesta terra e não num lugar abstracto."

Neste momento em que qualquer tipo de paraíso parece bem longe das perspectivas do mundo ocidental, é altura de reler, por junto, toda a obra do novo Prémio Nobel.

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Seria totalmente injusto falar de Mario Vargas Llosa, principalmente no momento em que acaba de receber - com o aplauso generalizado - o Prémio Nobel da Literatura, 2010, focando, em primeiro lugar, a sua agradável presença física. No entanto, quando em 2003 fui ao seu encontro para uma entrevista sobre a publicação, em Portugal, do livro O Paraíso na Outra Esquina, não pude deixar de notar o seu ar patrício, a sua afabilidade, o seu inefável sorriso e a sua clara disponibilidade para uma boa conversa (Beleza e inteligência, não é para todos.)

O homem que nasceu no Peru (Arequipa) a 28 de Março de 1936 tem mostrado, ao longo dos anos, o seu carácter, a sua força e a sua tremenda capacidade para contar histórias, ao mesmo tempo que se empenha no debate das ideias e no envolvimento cívico. Na sua qualidade de jornalista, professor, crítico literário, romancista e ensaísta, já recebeu (quase) todas as honras, troféus e prémios, sem, contudo, abrandar a sua incansável actividade, tanto física como intelectual. Desde o tempo em que apoiou Fidel Castro - para mais tarde mostrar a sua desilusão, tal como aconteceu em relação ao seu antigo amigo Gabriel Garcia Marquez - até se candidatar à Presidência do Peru em 1990 pelos liberais- conservadores, um episódio que protagonizou por achar que era um "dever cívico" - a sua derrota foi, em minha opinião, uma das grandes vitórias para a literatura -, Vargas Llosa foi sempre lúcido, crítico e construtor de novas ideias, conseguindo, através de algumas das suas vacilações e reviravoltas ideológicas, melhorar efectivamente a sua perspectiva. Em 2003, com 67 anos, rico, famoso e respeitado em todo o mundo, não hesitou em instalar-se no Iraque para ver de perto e analisar os acontecimentos. O resultado traduziu-se numa série de reportagens publicadas no jornal El Pais - reunidas no livro Diário do Iraque - na qual Llosa, com o vigor e clarividência que o caracterizam, mostra o seu envolvimento nas questões mundiais e na política global. O jornalismo e tudo o que esse mister envolve são, de acordo com as suas palavras, muito importantes por o manterem em consonância com a História, à medida que esta se desenrola. A vida da rua é uma maneira de ele evitar refugiar-se num universo só de fantasia, de imaginação, algo que seduz alguns escritores mas que, para ele, não possui qualquer atractivo. Recorde-se que, por mais de uma vez, nas páginas do El Pais - e não só - Vargas Llosa tem-se insurgido contra aquilo a que chama o "silêncio dos intelectuais espanhóis" em relação ao problema do terrorismo, afirmando que a política não pode ser um pragmatismo puro, tem de englobar a imaginação, o que implica, por parte dos ditos intelectuais, um papel a cumprir. 

Em O Paraíso na Outra Esquina, pretexto para a nossa conversa no dia da entrevista, tal como em toda a sua obra, a beleza e mestria da escrita estão ao serviço das ideias. Mesmo nas passagens mais líricas, mais finamente cinzeladas, mais solidamente edificadas, mais complexamente tecidas, mais ironicamente desvendadas, Vargas Llosa fala-nos de verdades duras e exemplares. O livro, que segue a história de Paul Gauguin e da sua avó, a feminista Flora Tristán (longínqua parente do escritor) é, na realidade, uma parábola que põe em confronto dois conceitos de felicidade: um individual (o paraíso) e outro colectivo (a utopia). 

Muito haverá para dizer sobre este autor que não se coibiu de transpor as suas experiências pessoais para os livros que escreveu. Impossível esquecer a imagem pouco lisonjeira da escola militar Leôncio Prado (na obra de 1962 A Cidade e Os Cães), onde a corrupção da instituição espelha a do seu próprio país; ou Tia Júlia e o Escrevedor (1977) um relato mordaz e inflamado da sua relação com Julia Urquidi, cunhada da sua mãe, com quem acabou por casar, apesar da diferença de idades. As injustiças e imposições de uma sociedade desadequada e desumanizada têm sido o tema central da obra de Vargas Llosa - tanto a nível individual como colectivo e obras como A Casa Verde e A Festa do Chibo são dois dos melhores exemplos das suas inquietações políticas. 

No final da entrevista de 2003, quando ainda se falava num mundo mais ou menos pacífico e próspero, o escritor afirmou: "Mantemos a nostalgia dessa sociedade perfeita com a qual se inicia a nossa cultura. Nós começámos com a ideia de um paraíso que perdemos. A nossa busca é um retorno a essa idade de ouro a cuja perda nunca nos resignamos. Todas as grandes religiões prometem o éden, tal como as grandes ideologias. Com a diferença de que estas últimas nos prometem o paraíso nesta terra e não num lugar abstracto."

Neste momento em que qualquer tipo de paraíso parece bem longe das perspectivas do mundo ocidental, é altura de reler, por junto, toda a obra do novo Prémio Nobel.