MGM: O leão já não mostra a sua raça

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Greta Garbo junto ao símbolo vivo da MGM Getty Images

Hoje, esse estúdio estreou apenas dois filmes nos últimos 18 meses, tem uma mão-cheia deles suspensos à espera de perceber o que vem a seguir, está há quase um ano a fugir à falência técnica, com dívidas perto de três mil milhões de euros. Os seus planos gloriosos de regressar em 2010 à "primeira liga" da qual já fez parte - mesmo que a primeira liga já não seja hoje o que era - já caíram por terra.

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Hoje, esse estúdio estreou apenas dois filmes nos últimos 18 meses, tem uma mão-cheia deles suspensos à espera de perceber o que vem a seguir, está há quase um ano a fugir à falência técnica, com dívidas perto de três mil milhões de euros. Os seus planos gloriosos de regressar em 2010 à "primeira liga" da qual já fez parte - mesmo que a primeira liga já não seja hoje o que era - já caíram por terra.

Este pode bem ser o último capítulo da história daquele que foi um dos maiores estúdios da era de ouro de Hollywood, a companhia que nos deu O Feiticeiro de Oz, Serenata à Chuva, Doze Indomáveis Patifes, O Grande Mestre do Crime, Casamento Escandaloso, Victor/Victoria,Um Americano em Paris, O Pai da Noiva, Intriga Internacional, Ben-Hur, Gigi, Gata em Telhado de Zinco Quente, Ivanhoe, O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, Não Há Como A Nossa Casa, 2001: Odisseia no Espaço, Poltergeist, A Família Miniver...

Essa Metro-Goldwyn-Mayer, simbolizada na nobreza do leão que rugia no arranque de cada genérico, já não existe há muito tempo, perdida nas turbulências que atingiram a indústria do cinema nas últimas décadas. A sua história é, ao mesmo tempo, uma espécie de exemplo edificante - é isto que pode acontecer se não se portarem bem - mas também de destino possível - isto pode acontecer a qualquer um de nós. E o destino da MGM poderia bem ter sido o de qualquer outro grande estúdio de Hollywood nos últimos 50 anos.

Os tempos mudam. Mas o rugido sedutor do "leão da Metro" continua a contar histórias de um tempo que não volta mais.

Nascimento do "star system"

Há, como sempre, uma enorme ironia nisto tudo. A lógica de indústria que se encarregou de erodir a MGM ao longo do último meio século foi a mesma lógica que justificou a sua fundação, quando o exibidor americano Marcus Loew comprou duas produtoras de filmes e as juntou a uma terceira de que já era proprietário para garantir um volume de estreias regular para o seu circuito de salas.

A designação do estúdio assim criado em 1924 vinha da fusão do nome das três firmas - Metro Pictures Corporation, Goldwyn Pictures, Louis B. Mayer Productions: Metro-Goldwyn-Mayer. Loew, sediado em Nova Iorque, precisava de alguém na Costa Oeste para supervisionar a produção da entidade combinada; esse alguém foi Mayer, que acabaria por conduzir os destinos do estúdio até 1951 e o estabeleceu como modelo da "fábrica de sonhos". Foi a MGM quem lançou o conceito de star system, nascido da necessidade de impor rapidamente a sua produção própria, controlando com rédea curta a imagem pública dos seus actores. O estúdio teve sob contrato, durante esses anos dourados, Greta Garbo, John Gilbert, William Powell, Clark Gable, Judy Garland, Jeannette MacDonald, Nelson Eddy, Buster Keaton, Joan Crawford, Mickey Rooney, Gene Kelly, Fred Astaire, Spencer Tracy, Kathryn Grayson, Howard Keel, Elizabeth Taylor...

Com o grosso do circuito Loew"s concentrado no Nordeste americano, considerado mais burguês e cosmopolita, os filmes da MGM projectavam uma ideia de requinte e prestígio, sobretudo durante a década em que Irving Thalberg dirigiu a produção do estúdio, entre 1924 e 1936. Thalberg, conhecido como "menino prodígio", terá sido o primeiro verdadeiro exemplo do "grande produtor" capaz de equilibrar talento, qualidade e sucesso (e a sua figura serviria de base ao romance sobre Hollywood que F. Scott Fitzgerald deixou inacabado, The Last Tycoon); devem-se-lhe clássicos como Grande Hotel,Revolta na Bounty, San Francisco ou a revelação dos Irmãos Marx com Uma Noite na Ópera.

O equilíbrio entre as produções de prestígio de Thalberg e as séries mais comerciais (Andy Hardy, Lassie, Nick e Nora Charles, Tarzan) defendidas por Mayer não se perdeu com a morte prematura do produtor em 1936. Ciente da saúde frágil de Thalberg, Mayer delegara antes a produção numa série de "unidades" geridas autonomamente - das quais o melhor exemplo será a equipa de Arthur Freed, que produziu até 1960 a maior parte dos musicais emblemáticos de Hollywood, do estúdio e do género. A MGM seria, quase até ao final dos anos 1950, primeiro entre iguais: num ecossistema onde cada um dos cinco grandes da altura (Fox, MGM, Paramount, RKO e Warner) assumira um papel definido, a Metro era a grande marca de prestígio e requinte.

Os problemas começaram quando, em 1954, o Supremo Tribunal de Justiça americano, através do célebre "decreto Paramount", acabou com o "oligopólio" dos grandes estúdios sobre a exibição cinematográfica americana. Com as principais cadeias de exibição controladas pelos grandes estúdios, os juízes do Supremo obrigaram à separação dos circuitos: exibidores e produtores não podiam estar ligados. Os estúdios deixavam de ter a reserva de dinheiro que as salas garantiam e passavam a estar mais dependentes dos seus próprios êxitos e fracassos. Onde cada um tinha à sua disposição um circuito de salas por sua conta, agora todos tinham de se submeter à lei do mercado, abrir as salas à concorrência e aprender a viver no "novo mundo".

Tudo isto coincidiu com o período em que o universo controlado e estanque dos estúdios começava a desmoronar-se. Através da chegada da televisão, que começava a ganhar terreno nos lazeres de massas e a roubar espectadores às salas. Através das primeiras fugas ao código Hays, guardião da moral pública americana que estabelecia regras para o que era admissível em termos de violência e sensualidade num filme para o grande público. Enfim, através do novo estado de espírito do pós-guerra, que já não se resumia às dicotomias clássicas do preto e branco mas mostrava agora toda uma série de cambiantes, de incertezas, de dúvidas, cristalizadas no film noir dos anos 1950.

O mundo mudara. Hollywood, apesar de não parecer, não tinha ainda percebido que não tinha mudado.

Os lazeres caseiros

É fácil olhar para Hollywood nos anos 1950 e encontrar uma comparação com os nossos dias. Então, era a televisão que assustava; hoje, é a Internet e os videojogos. Então como hoje, a concorrência dos lazeres caseiros é o papão que não deixa estúdios e exibidores dormir: a arma de então era o ecrã panorâmico (Cinemascope, Cinerama, Todd-AO), a de hoje é o 3D digital.

Então como hoje, a MGM foi dos primeiros estúdios a abraçar - mesmo que cautelosamente - a nova era. Em 1956, a venda à CBS dos direitos de exibição televisivos de O Feiticeiro de Oz lançou a exibição de cinema na televisão e, de caminho, a ideia do filme como evento de prestígio que reunia toda a família à volta do aparelho, e que se manteve intacta durante décadas. Em 2007, o estúdio disponibilizou parte da sua biblioteca através do serviço iTunes da Apple e lançou um canal de filmes em alta definição, MGM HD, e em 2008 iniciou uma experiência de disponibilização de filmes no YouTube, para além de um novo canal de cabo (Epix) com a Paramount e a Lionsgate.

Mas tudo isto são questões periféricas, secundárias; porque não é (ainda) aqui que está o dinheiro a sério de que os estúdios precisam como pão para a boca. Apesar destas experiências, a Hollywood de hoje está tão à toa como há 50 anos, mas com problemas financeiros significamente piores, em parte devido às exigências financeiras das casas-mãe, conglomerados industriais que não se compadecem com o ritmo lento a que um estúdio se constrói.

A MGM dos anos 1930 produzia 50 filmes por ano, a dos anos 1940 e 50, 25; só assim se conseguia construir uma imagem, uma reputação, um catálogo. Pacientemente. E todo esse trabalho de paciência pode ser destruído por uma única aposta no cavalo errado: a United Artists foi à falência em 1980 com As Portas do Céu, de Michael Cimino, a Fox evitou-a rés-vés com o infame Cleópatra de Joseph Mankiewicz. O sucesso é a coisa mais imprevisível do mundo, e a natureza do negócio do cinema é a de uma montanha-russa onde a sorte joga um factor determinante. No entanto, insiste-se e continua a insistir-se na enorme contradição: querer programar, orçamentar, codificar uma indústria onde, como disse em tempos o argumentista William Goldman, "ninguém sabe nada" - isto é, onde ninguém consegue prever nada porque tudo é imprevisível.

Os problemas que a MGM enfrenta actualmente para pôr de pé uma linha de produção não são caso único em Hollywood. Ao longo dos últimos dois anos, todos os "seis grandes" - Columbia, Disney, Fox, Paramount, Universal e Warner - despediram pessoal, substituíram executivos de topo, reduziram drasticamente o número de filmes que produzem e estreiam, encerraram divisões. A Universal e a Disney substituíram mesmo completamente em 2009 as suas equipas de executivos, a primeira na sequência de um Verão negro onde os desastres de bilheteira se sucederam sem apelo nem agravo, a segunda por um desentendimento estratégico entre chefias e criativos. Mesmo operações mais pequenas, como a Lionsgate, enfrentam dificuldades, quer por terem expandido demasiado depressa, quer por terem tropeçado num mercado sobrecarregado.

A diferença entre a MGM e os outros? Ao longo dos últimos 18 meses, o estúdio do leão apenas estreou... dois filmes. Um deles, a remake de Fama dirigida por Kevin Tancharoen, ficou tão abaixo das expectativas que nem o sucesso modesto do outro, a comédia Hot Tub Time Machine, permitiu recuperar o investimento.

Ao ponto de, neste momento, a MGM não ter dinheiro para terminar e estrear os filmes que tinha previstos estrear em 2010: Red Dawn (remake de Amanhecer Violento de John Milius dirigida pelo duplo Dan Bradley, à espera de pós-produção), The Cabin in the Woods (filme de terror escrito e produzido por Joss Whedon, criador de Buffy Caçadora de Vampiros, adiado para 2011) e The Zookeeper (comédia produzida por Adam Sandler, que vai estrear em 2011 pela Columbia).

Ao ponto de Michael Wilson e Barbara Broccoli terem suspenso a pré-produção do novo filme de James Bond até haver certezas quanto ao futuro do estúdio, que detém os direitos da personagem.

Ao ponto de Guillermo del Toro se ter retirado do projecto de filmar O Hobbit de J. R. R. Tolkien, prequela do Senhor dos Anéis que a MGM devia co-produzir com a divisão New Line da Warner devido a uma longa história de direitos, por sentir que a espada de Dâmocles que pesa sobre o estúdio corria o risco de atirar o filme para o limbo.

Os investidores

Durante os últimos 40 anos, a Metro foi alvo de uma conturbada série de negócios que a viram tornar-se numa espécie de brinquedo nas mãos de investidores mais ou menos escrupulosos, deslumbrados pelo glamour mágico da aura que o estúdio ainda tinha. O mais regular foi o investidor Kirk Kerkorian, que vinha da hotelaria de Las Vegas e foi por três vezes dono do estúdio (1969-1986, 1986-1990, 1996-2004). Sob Kerkorian, numa primeira fase, o estúdio desfez-se dos plateaux de rodagem nos EUA e em Inglaterra e do enorme acervo de cenários e figurinos e concentrou-se em produções de baixo orçamento financiadas externamente; numa segunda fase, fundiu-se com a United Artists, comprada em 1981 pelo investidor na sequência do desastre de bilheteira de As Portas do Céu.

Com os passivos da companhia vendidos aos quatro ventos de acordo com as tendências financeiras do momento, a MGM não possui os direitos da sua extensa biblioteca de clássicos da "era de ouro", que ficaram nas mãos de Ted Turner (dono do estúdio durante três meses em 1986) e são controlados pela Warner. Hoje, a MGM é essencialmente gestora de direitos de perto de quatro mil filmes, entre produções próprias posteriores a 1986 e acervos adquiridos ao longo dos anos. Entre eles, estão os catálogos da United Artists pós-1952 (com todos os James Bond, os primeiros Woody Allen e Martin Scorsese), Orion (o primeiro Exterminador Implacável, a segunda fase de Allen), American International (com todas as grandes produções de Roger Corman dos anos 1960), Samuel Goldwyn Company, Motion Picture Corporation of America, Hemdale (Platoon de Oliver Stone), Polygram e Cannon (Sylvester Stallone, Chuck Norris). Um acervo que, com a queda das vendas do DVD, já não garante os mesmos resultados regulares de outros tempos.

Desde 2004, as marcas MGM e UA são propriedade de um consórcio financeiro formado pela Sony americana, pela empresa de comunicações Comcast e por quatro fundos de investimento privados; as raras produções próprias são distribuídas fora dos EUA pela Fox, que gere igualmente os direitos de vídeo e DVD, enquanto nos EUA a MGM reduziu-se praticamente a uma operação de distribuição de produções externas.

As tentativas de se voltar a impor como entidade produtora esbarraram numa série de erros altamente publicitados: a expectativa que Tom Cruise e a sua sócia Paula Wagner revitalizassem a United Artists, em 2006, morreram com o insucesso de Peões em Jogo de Robert Redford, a rodagem problemática de Valquíria (que, ainda assim, conseguiu um assinalável êxito de bilheteira) e o cancelamento, já a produção tinha arrancado, de Pinkville, de Oliver Stone. Harry Sloan, presidente da firma colocado no cargo pelo consórcio Sony/Comcast, desenhara a estratégia inicial de relançar as duas marcas (MGM para a distribuição e United Artists para a produção) como forma de rendibilizar a aura de que ainda dispõem, mas foi entretanto afastado do cargo e substituído por Stephen Cooper, especialista em reestruturações corporativas. Mary Parent, antiga presidente de produção da Universal que aceitou o desafio de relançar a produção própria e pretendia estrear em 2010 doze filmes novos, deve estar por esta altura a flagelar-se por causa do buraco em que se foi meter. As linhas de crédito foram sendo esvaziadas sem que houvesse algo para mostrar como resultado.

Parte dos problemas tem apenas a ver com timing: tivesse a MGM decidido regressar à produção alguns anos antes, quando os fundos de investimento europeus abriram os cordões à bolsa e permitiram o desenvolvimento rápido e desafogado da produção independente, talvez o estúdio não estivesse hoje nesta situação. Só que, entretanto, os investidores perceberam o risco elevado da produção cinematográfica e a crise financeira veio desencorajar riscos sem garantia de retorno. Evidentemente, uma MGM que nem sequer tem produção própria mais susceptível estará a estas flutuações - e bastou o descalabro do remake de Fama para quaisquer ambições morrerem à nascença. Com três mil milhões de euros de dívida e seis adiamentos consecutivos de pagamentos da dívida e do juro autorizadas pelos credores (a nova extensão de adiamento termina em 15 de Setembro), resta apenas ao consórcio de proprietários vender - e vender a "preço de saldo" - o investimento pelo qual pagaram, há seis anos, perto de quatro mil milhões de euros. A Time Warner e a News Corp. (proprietária da Fox) já se retiraram, dando a entender que dificilmente pagariam mais de 1,2 mil milhões de euros pelo estúdio.

As três propostas em jogo neste momento envolvem uma "fusão de iguais" com a Lionsgate, estúdio independente responsável pela série Saw e muito virado para a produção de género de série B; uma compra pela Spyglass, produtora independente que esteve por trás de filmes como Star Trek ou O Sexto Sentido, que pretende reduzir o estúdio a uma produtora independente de seis filmes por ano distribuídos por uma das seis grandes; ou uma compra pela Summit, a independente por trás da série Crepúsculo.

É, no entanto, seguro dizer que nesta altura do campeonato a MGM nunca mais vai voltar a ser o que já foi. Só o leão do logótipo - que fora, em 1916, a mascote original do estúdio Goldwyn e depois aproveitada para identidade do novo estúdio em 1924 - nos deixa recordá-lo. Mas já nem esse leão é o mesmo que em tempos foi.