Autobiografia de Mark Twain publicada cem anos após a sua morte

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"Ele era certamente um homem que sabia como levar as pessoas a querer comprar um livro", diz Robert Hirst, responsável pela edição da autobiografia de Mark Twain, que a Universidade da Califórnia irá começar a publicar em Novembro, e que ocupará três grossos volumes. A ironia de Hirst até se adapta bem ao instinto publicitário de que o autor de Huckleberry Finn sempre deu provas, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo o que levou Twain a deixar, junto às cinco mil páginas da sua autobiografia, uma folha manuscrita com instruções para que esta só fosse publicada um século após a sua morte.

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"Ele era certamente um homem que sabia como levar as pessoas a querer comprar um livro", diz Robert Hirst, responsável pela edição da autobiografia de Mark Twain, que a Universidade da Califórnia irá começar a publicar em Novembro, e que ocupará três grossos volumes. A ironia de Hirst até se adapta bem ao instinto publicitário de que o autor de Huckleberry Finn sempre deu provas, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo o que levou Twain a deixar, junto às cinco mil páginas da sua autobiografia, uma folha manuscrita com instruções para que esta só fosse publicada um século após a sua morte.

Que não a tivesse querido publicar em vida, percebe-se facilmente, porque está cheia de apreciações nada lisonjeiras, quer de figuras públicas - uma das vítimas é o próprio Presidente Theodore Roosevelt, que deixara o cargo um ano antes da morte de Twain -, quer de pessoas da sua roda de conhecimentos pessoais, incluindo amigos, governantas, e, muito particularmente, a sua secretária Isabel Van Kleek Lyon, à qual dedica nada menos de 400 páginas.

Como Twain expressa com inteira franqueza as suas opiniões em matéria de política e religião - critica o imperialismo dos Estados Unidos em Cuba, Porto Rico e nas Filipinas, diz que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, e sugere aos cristãos americanos que, em vez de irem missionar para África, fariam melhor em dedicar-se a converter os ateus esclavagistas que continuavam a linchar negros nos estados sulistas -, vários académicos têm sugerido que o autor protelou por um século a publicação de livro para se sentir à vontade para dizer tudo o que pensava.

Parece mais plausível, contudo, que a verdadeira explicação resida nas venenosas observações que Twain faz a respeito de muitos amigos e contemporâneos. É provável que queira ter tido a certeza de que os atingidos, e seus descendentes imediatos, que seguramente se ofenderiam com as "farpas", já não iriam ler o livro. Em todo o caso, o que é talvez mais surpreendente é a sua aparente convicção de que os leitores do século XXI iriam interessar-se o suficiente por ele para querer conhecer os mais ínfimos detalhes da sua existência. E, muito provavelmente, tinha razão.

Das muitas figuras que Twain maltrata no livro, Isabel Van Kleek Lyon é um caso à parte. As 400 páginas que lhe dedicou, todas elas escritas pouco antes de morrer, constituem uma espécie de adenda à sua autobiografia. Twain contratou-a em 1902, pouco depois de regressar aos EUA e de se instalar em Greenwich Village, em Nova Iorque, após se ter visto obrigado a andar alguns anos em digressões pela Europa, tentando recuperar as suas abaladas finanças. Isabel, filha do escritor e empresário Charles Lyon, que morrera quando ela tinha 19 anos, vivia um momento difícil após o suicídio de um irmão. Tinha 38 anos, era solteira e estava desempregada.

Quando Samuel Langhorne Clemens, que já então todos conheciam pelo pseudónimo literário de Mark Twain - Faulkner considerava-o "o pai da literatura americana" -, a contratou para que lhe tratasse da correspondência, Isabel Lyon não hesitou em aceitar. No diário que escreveu enquanto viveu sob o mesmo tecto que Twain, a secretária começa por lhe chamar "o rei" e considera-o "a mais gentil, respeitosa e adorável criatura sobre a Terra". Mas até 1909, quando o escritor a despede, terá tempo mais do que suficiente para ficar a conhecer o lado negro do bem-humorado autor de Tom Sawyer ou de Um Americano na Corte do Rei Artur.

Amizades com raparigas

Twain perdera uma filha em 1896 - Suzy Clemens, que morrera de meningite aos 31 anos - e, em 1902, quando Lyon foi viver para a casa de Greenwich Village, também a sua mulher, Olivia, estava já gravemente doente. Veio a morrer em 1904, e a sua morte provocou um esgotamento nervoso a outra filha, Clara, que passou um ano internada num sanatório. A terceira filha do casal, Jean, sofria de epilepsia desde os dez anos e viria a morrer em 1909, com 29 anos.

Afectado por esta sucessão de tragédias, Twain, que sempre revelara uma notável capacidade de trabalho, estava incapaz de esforços criativos prolongados, fumava vários maços de tabaco por dia, bebia muito, e passava o tempo a jogar bilhar e a implicar com todos os que o rodeavam. É este, pelo menos, o retrato que Isabel traça nas páginas do seu diário relativas aos últimos anos de vida do escritor. O círculo íntimo de Twain também se preocupava com as amizades que ele vinha desenvolvendo com uma dúzia de raparigas entre os 10 e os 16 anos - uma delas chegou a viver em sua casa -, embora não existam indícios de quaisquer tentativas de abuso sexual.

Em Fevereiro de 1909, Isabel casou-se com o encarregado de negócios de Twain, Ralph Ashcroft, e, pouco depois, o escritor despediu-a. Na sua autobiografia, Twain chama a Isabel "mentirosa, falsária, traidora e conspiradora", e acusa-a de o ter tentado seduzir para ficar de posse dos direitos sobre a sua obra literária.

Se muitas das páginas da sua autobiografia já eram conhecidas - o próprio Twain enviou excertos para revistas, quando estava mais necessitado de dinheiro, e a Universidade da Califórnia, que detém o original e respectivos direitos de publicação, foi permitindo a vários biógrafos do escritor que citassem algumas partes -, a secção relativa à secretária é quase integralmente inédita. Laura Trombley, autora de um livro sobre Lyon - Mark Twain's Other Woman -, descreve-as como "quatrocentas páginas de bílis".