Na "pasmaceira" de Barcelos há uma cena

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Aspen: trio post-rock que dispensa vocalista Adriano Miranda

"Em Barcelos há um movimento, mas não é como em Londres. As pessoas não podem vir cá à espera de encontrar cartazes por todo o lado. Cá há mais bandas do que público". As palavras são de Manuel Melo, locutor barcelense que, há duas décadas, mantém um dos últimos programas radiofónicos de autor do nosso país, o Sinfonias de Aço. É da cidade do Galo que vêm os Black Bombaim, banda "stoner-rock" - rock instrumental, pesado e psicadélico - que muitos estranham por não ter vocalista, outros aderem em jeito de revivalismo de Black Sabbath ou Led Zeppelin e muitos, "cada vez mais e dos mais variados escalões etários", segundo o baixista Tojo, dizem simplesmente: "isto é que é rock". Este power-trio desce hoje a Lisboa para apresentar novo disco na Galeria Zé dos Bois.

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"Em Barcelos há um movimento, mas não é como em Londres. As pessoas não podem vir cá à espera de encontrar cartazes por todo o lado. Cá há mais bandas do que público". As palavras são de Manuel Melo, locutor barcelense que, há duas décadas, mantém um dos últimos programas radiofónicos de autor do nosso país, o Sinfonias de Aço. É da cidade do Galo que vêm os Black Bombaim, banda "stoner-rock" - rock instrumental, pesado e psicadélico - que muitos estranham por não ter vocalista, outros aderem em jeito de revivalismo de Black Sabbath ou Led Zeppelin e muitos, "cada vez mais e dos mais variados escalões etários", segundo o baixista Tojo, dizem simplesmente: "isto é que é rock". Este power-trio desce hoje a Lisboa para apresentar novo disco na Galeria Zé dos Bois.

Para além da banda de "Saturdays and Space Travels", a sede do concelho com maior número de freguesias do país é também a cidade-mãe de, entre outras dezenas - sim, dezenas - de bandas como ALTO!, Aspen, Azia, The Glockenwise, indignu ou La La La Ressonance. Por entre ensaios e concertos pelos mais variados pontos do país, eles pousaram os instrumentos para explicarem ao Ípsilon o nascimento de tantas bandas numa cidade com apenas 20 mil habitantes. "Agora sim, o movimento está forte e o importante é não deixar a bola de neve ficar pequena e desfazer-se", reitera o radialista.

A influência dos conterrâneos

"Normalmente costuma explicar-se este fenómeno por não haver mais nada para fazer. Mas, nesse aspecto, Barcelos não é diferente de outras cidades desta dimensão. A diferença, quanto a mim, passa por toda a gente ter uma banda ou ter amigos com uma", explica Pedro Silva. O vocalista e guitarrista dos Azia revela que "já tinha ideias de criar uma banda punk antes de ter conhecimento da amplitude deste movimento".

À porta do Lambreta, bar de decoração e música rock gerido por Filipe Brito, baixista da mesma banda, Silva aponta um factor decisivo para o avançar da sua convicção. "Quando tinha 15/16 anos, adorava ver os [também barcelenses] Rendimento Mínimo dar aqueles concertos de calças rasgadas até a luz ir abaixo. Era altamente..."

Anos mais tarde, e ainda antes de dividir o tempo dedicado à banda com a função de jornalista numa publicação local, actuou, num dos poucos eventos organizados pela Câmara Municipal, com uma t-shirt com a frase "Reis para a rua" estampada - referência ao antigo presidente da Câmara, Fernando Reis, que após ter acumulado 20 anos no cargo foi destronado nas últimas autárquicas.

Apesar de não partilharem a prática dos mesmos géneros musicais, diversas gerações de bandas barcelenses costumam cruzar-se em tardes de ensaios nos Estúdios Oops. Numa destas tardes, Tito, guitarrista dos Aspen, após ter começado nos irreverentes Glockenwise, também assumiu a influência dos seus conterrâneos. E do digital. "Ao ver os concertos dos Black Bombaim, surgiu o interesse pelo 'stoner rock'. Graças à internet pude informar-me mais sobre esse conceito".

Após deambulações por esse género que agora consideram "morto", os Aspen surgiram das cinzas dos Cosmic Vishnu, sobre a forma de trio pós-rock que, tal com os Bombaim, permanece, por opção, sem vocalista.
Na mesma tarde, mas numa sala ao lado nos mesmos estúdios, ensaiavam os La La La Ressonance, colectivo de uma geração mais velha do que a de Tito, cujos elementos têm formação académica ligada à música e cujos concertos já foram solicitados em salas tão limpas como a portuense Casa da Música ou o lisboeta Centro Cultural de Belém. Movendo-se no mundo da música há mais de uma década, tendo visto gerações mais novas criar bandas com uma frequência fora do comum, o multi-instrumentista André Simão encontra apenas duas explicações óbvias. "A primeira é a inspiração de antigas bandas barcelenses que conseguiram alguma projecção e pode levar a pensar: 'se estes gajos que vejo no supermercado ou no café o fizeram, também o posso fazer'. A segunda poderá ser as condições técnicas, como este espaço, que foram criadas".

As constantes referências a outras gerações por parte da generalidade das bandas barcelenses apontam para a década de 90. Projectos, entretanto abandonados, como Antonishing Urbana Fall, a partir dos quais surgiu a mutação para La La La Ressonance, chegaram a abrir o palco principal do festival Paredes de Coura. Os Kafka tocaram no Sudoeste. Os Orathory tornaram-se na primeira banda portuguesa a actuar no maior festival de metal da Europa - o alemão Wacken Open Air - e, já no final da década, quando as bandas de Barcelos caminhavam para um adormecimento que durou alguns anos, os Immortalis cruzaram o Atlântico para tocar nas comemorações dos 500 anos de chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. No que toca às bandas actuais, André Simão, dos La La La Ressonance, considera que "o rock psicadélico dos Black Bombaim não tem nada a ver com o punk rock dos Glockenwise, com o nosso projecto mais pop/instrumental/jazz ou com os BiarooZ, mais ligados à electrónica". O que, em jeito de comparação com outras "cenas", Manchester anos 80 e Seattle anos 90, o leva a dizer que "não há um género a nascer". A troca de sinergias surge com outras motivações. "Se alguém precisa de um baixo ou de qualquer outra coisa, toda a gente se apronta a ajudar" exemplifica Pedro Silva dos Azia.

Após duas datas em latitudes mais baixas- Caldas da Rainha e Tramagal, vila no concelho de Abrantes -, os Black Bombaim regressaram a Barcelos com os Glockenwise à pendura. Os "putos", como lhes chamam carinhosamente, também actuaram na segunda noite, o que motivou a deslocação de ambas as bandas na mesma carrinha.

À espera do veículo, cheio de garrafas de água vazias que adivinhavam uma noite anterior com alguns excessos, estavam Bruno Costa, Tiago Silva e Joca, três elementos dos ALTO!. Precisavam da presença de Senra, dos Black Bombaim, para abrir o "bunker", a cave do café onde ensaiam - é propriedade de Senra. Este e Ricardo Miranda acumulam neste quinteto os papéis desenvolvidos nos Black Bombaim.

Não é invulgar a presença de músicos em mais do que um projecto: para além de vocalista dos ALTO!, Joca assume também a posição de "frontman" dos Green Machine, banda que elementos dos Glockenwise e Black Bombaim apontam como importante para o seu despertar musical. No meio da geração mais nova com quem toca, Joca dá conta da evolução dos tempos ao afirmar que quando andava na escola "havia apenas um metaleiro e um punk". Hoje, na hora de nomear um projecto responsável pela atracção de miúdos de 14/15/16 anos a um novo ciclo de bandas, os indicadores apontam para os Glockenwise. Confrontado com esta curiosidade estatística, o guitarrista Rafa responde: "não me considero um exemplo".

Underground contra a pasmaceira

Apesar do constante crescimento da comunidade barcelense ligada à música, a vida cultural em Barcelos é, opinião da generalidade das bandas, inexistente - ao contrário das vizinhas Famalicão, Braga ou Guimarães que são culturalmente movidas pelas Casa das Artes, Theatro Circo e Centro Cultural Vila Flor, respectivamente. A maior sala, o Teatro Gil Vicente, está fechada há duas décadas e antes de chegarem ao reconhecimento exterior os concertos tinham que decorrer em caves, cafés ou caves de cafés não só da cidade como das freguesias vizinhas.

"Há sempre qualquer coisa a acontecer no 'underground' barcelense", explica Ilídio Marques. Essas palavras denotam uma evolução relativamente à descrição do radialista Manuel Melo - "não havia concertos nem espaços em condições, mas as bandas não desanimavam" - da cidade minhota, no final dos anos 80, quando se começaram a sentir ecos dos vizinhos bracarenses Mão Morta.

Tal como o radialista, Ilídio não tem nenhuma banda. Há seis anos, quando ainda frequentava o ensino secundário, antes de começarem as migrações pendulares para a universidade, começou a interessar-se pela actividade das bandas locais. Hoje, "mais do que relação profissional, até porque não o somos, criou-se uma amizade". Gere o portal de divulgação de actividade musical das bandas de Barcelos "Rock Rola em Barcelos". As comunidades virtuais como o Myspace desempenharam, segundo este divulgador, "um papel crucial pelo impacto que gerou em torno das bandas". A dicotomia "devoção dos barcelenses à música/ oferta cultural quase inexistente" surge como motivo maior para uma relação de amor-ódio com a cidade. "Não há mais nada que possa captar a atenção dos jovens e a música está entranhada na pele. Estas novas bandas já tinham visto outras bandas e assim sucessivamente. Por muito que cheguem a dar apenas um concerto ou que apenas 20 pessoas as venham a conhecer, de dois em dois meses aparece uma nova banda barcelense no Myspace", explica. Antes de concluir: "Barcelos é uma cidade onde falo com toda a gente sobre discos e músicos mas também onde a pasmaceira cultural nos leva ao aborrecimento".

Na impossibilidade de serem recebidos ou poderem assistir a concertos em salas com boas condições na cidade-natal, respondem aos apelos do Porto, cidade que para os Aspen é "ponto de referência, a partir do qual causamos o impacto que nos permite partir para outros palcos".

Na terça-feira, o Porto viu os Black Bombaim abrirem para os norte-americanos The Russian Circles, num Plano B lotado, quatro dias após os indignu terem subido ao palco do ribeirinho O Meu Mercedes é Maior do que o Teu. Afonso Dorido, o vocalista dos indignu, mais uma banda conotada com o pós-rock, conta que "num fim-de-semana chegou a haver seis bandas de Barcelos a tocar no Porto em espaços diferentes". Os La La La Ressonance foram outra dessas bandas. "Tínhamos tocado no Passos Manuel e, no dia seguinte, quando íamos beber um copo fomos surpreendidos pelos Glockenwise a tocar na rua [a abrir para Sean Riley & The Slowriders no Porto Sounds]", relembra André Simão antes de partir para outro exemplo da omnipresença dos músicos conterrâneos. "Os [lisboetas] Rose Blanket pediram-me uma contribuição no baixo. Quando fui a Viana do Castelo gravar, estava lá outra convidada para tocar violino. Após termos trocado meia dúzia de palavras, descobrimos que ambos éramos de Barcelos. Ela, a Bárbara, toca nos GODOG, banda de metal. Eu nunca a tinha visto e fomo-nos encontrar em Viana para gravar para uma banda de Lisboa e, um pouco mais tarde, apareceu o Pedro Oliveira que também é de cá e toca nos bracarenses Peixe:Avião. Isto é capaz de ser totalmente impossível para elementos de outra cidade e, se considerarmos o número de habitantes, é algo inexplicável".

Antes de abandonarmos os Estúdios Oops pedimos a Simão uma opinião sobre os Black Bombaim, a banda de Tojo que chegou a frequentar as aulas de baixo leccionadas pelo elemento dos La La La Ressonance. "Gosto do projecto. Há uma sobrecarga e uma energia na música deles que é o ponto forte da banda. Têm uma estética sempre no limite entre o riff fácil e uma coisa mais estruturada. Reconheço-lhes o mérito de serem uma banda muito arriscadiça porque toca em pontos muito duvidosos na história da música, como aquele psicadelismo das guitarras, um universo no qual eles arriscam muito".

Os próprios Black Bombaim consideram "stoner rock" um termo "polémico". "É mais um movimento do que um género", argumenta Tojo. "Basicamente é rock instrumental, pesado e psicadélico. Tentamos aproximar-nos mais do peso do metal do que as bandas psicadélicas dos anos 70", explica, pouco antes de citar os norte-americanos Earthless como inspiradores. O novo longa duração do trio conta apenas com duas faixas, o lado A e o lado B, termos pouco comuns na era do digital mas que se enquadram num disco que será posto à venda apenas em vinyl.

"Como a nossa sonoridade é inspirada na década de 70, faz sentido lançarmos apenas em vinyl, o único formato no qual compramos discos". No que toca a concertos, têm datas agendadas para diversos pontos do país e para a Galiza, onde dizem que conseguem fazer boas vendas de discos. A Galiza traz-lhes, aliás, à memória um concerto nos primeiros anos... "Havia apenas sete pessoas na plateia, mas conseguimos vender oito discos porque um tipo que estava de passagem também levou um".

Ambicionam enviar exemplares de "Saturdays and Space Travels" para os EUA, "principalmente São Francisco, Califórnia", e têm agendada uma digressão de duas semanas pelo Reino Unido que, para já, asseguram que passará por Londres. A noite de hoje leva-os até ao Bairro Alto, a segunda passagem dos Black Bombaim pelo aquário da lisboeta Galeria Zé dos Bois.