Filipe e o destino do mundo

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"Posso mesmo dizer que é a melhor novela gráfica portuguesa que alguma vez li." Quantas novelas gráficas portuguesas conhecerá John Landis? Provavelmente apenas uma, aquela que Filipe Melo lhe mandou pelo correio há uns meses para os escritórios da Ealing Studios, em Londres. Uma novela gráfica com lobisomens, gárgulas, vampiros e zombies, em que o futuro do mundo se decide em Lisboa, algo que nunca tinha acontecido antes no cinema ou na BD. Invariavelmente, algo tão apocalítico decide-se em Nova Iorque, Los Angeles, Londres ou Tóquio.

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"Posso mesmo dizer que é a melhor novela gráfica portuguesa que alguma vez li." Quantas novelas gráficas portuguesas conhecerá John Landis? Provavelmente apenas uma, aquela que Filipe Melo lhe mandou pelo correio há uns meses para os escritórios da Ealing Studios, em Londres. Uma novela gráfica com lobisomens, gárgulas, vampiros e zombies, em que o futuro do mundo se decide em Lisboa, algo que nunca tinha acontecido antes no cinema ou na BD. Invariavelmente, algo tão apocalítico decide-se em Nova Iorque, Los Angeles, Londres ou Tóquio.

Não é o caso de "As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy" (já conseguem adivinhar quem é o lobisomem?), a tal novela gráfica portuguesa para a qual John Landis, realizador de "Um Lobisomem Americano em Londres" e "O Dueto da Corda", aceitou escrever o prefácio. O ponto de partida: Lisboa, como local de passagem da comunidade de espiões durante a II Guerra Mundial, serviu também de refúgio para os monstros, uma minoria perseguida. Nesta história, os vilões são outros.

Filipe Melo, o argumentista e aquele que convenceu Landis a escrever o prefácio - "deve ter visto tanto tributo, que teve de assumir a culpa" -, já tinha a história na cabeça desde 2005 e queria fazer um filme. E chegou a ter propostas portuguesas e uma que veio do estrangeiro, de Uwe Boll, o infame realizador alemão que gosta de adaptar jogos de computador ao cinema e desafiar os seus críticos para combates de boxe - foi assim que ganhou a alcunha de "Raging Boll".

"Queria que fosse falado em inglês. Quem ler a banda desenhada, vai perceber que isto não é apenas português, é tuga. É muito lisboeta, é um tributo aos filmes fantásticos que vi e ao sítio onde cresci. A conversa com o Uwe Boll foi uma conversa por 'e-mail', mas eu, como sou assim para o magro e não tenho grande capacidade como pugilista, decidi não trabalhar com ele", recorda. É claro que se lhe aparecesse pela frente alguém como Steven Spielberg, Joe Dante ou John Carpenter, Filipe Melo "daria o dedo mindinho".

O filme nunca iria acontecer. Não havia euros suficientes para bancar uma superprodução de monstros, pelo menos não para fazer justiça ao filme que Melo tinha na cabeça. E fazia-lhe impressão perder o controlo criativo para outros. "O filme deixou de ser o objectivo. O plano B acabou por ficar muito mais próximo do que eu imaginei que alguma vez o plano A ficaria."

Pirata e pianista

No início dos anos 90, Filipe Melo passava horas fechado no quarto em frente ao computador. Os pais pensavam que era anti-social, mas os amigos estavam ali, como ele, a tentar penetrar em sistemas de segurança. Entrou em empresas de cartões de crédito e descobriu uma forma de fazer chamadas telefónicas sem pagar. Até que foi apanhado pela Polícia Judiciária, que lhe apreendeu o computador. Sentiu-se "desempregado" e começou olhar de forma diferente para o piano lá de casa.

A pirataria informática foi substituída pelo jazz. Entrou para a escola do Hot Clube "como quem vai para as aulas de natação". Prosseguiu os estudos musicais em Boston e voltou a Portugal. Ganhou prémios, tornou-se professor e tem feito carreira a solo e como acompanhante de vários músicos e cantores. A música, aliás, continua a ser a sua maior fonte de rendimento e a sua maior paixão. "Sou pianista de profissão. É triste, não é? [risos] O que mais me preenche é a música, especialmente o jazz, que é música de diálogo, música improvisada, é o que eu mais gosto de fazer, se não o fizer sou infeliz."

Quem sabe se ser pirata informático nos anos 90 não era uma influência de "War Games", o filme em que Matthew Broderick jogava às guerras nucleares com "Joshua", um supercomputador militar? É que, antes de ser "hacker" e músico, Filipe, que em 2010 tem 32 anos, foi um consumidor obsessivo de filmes e televisão, em que viu tudo, desde "Taxi Driver", a "As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Madarim", de "Tubarão" a "Massacre no Texas", o "Duarte e Companhia" e o "Dartacão". Um imaginário próprio de quem era criança em Portugal nos anos 80.

Clássico e "trash"

Para além do piano, Filipe Melo tinha uma câmara de vídeo. Foi com ela que fez os primeiros filmes, com "violentíssimas sequências 'gore'", que tinham como protagonistas os primos e bonecos Playmobil. Ser realizador era um sonho de criança e, depois das primeiras experiências caseiras, só voltou a repetir a experiência em 2003, como produtor de "I'll See you in My Dreams", uma curta de 22 minutos e o primeiro (e único) filme de zombies alguma vez feito em Portugal, com Manuel João Vieira (Enapá 2000 e Irmãos Catita).

Teve um gostinho de sucesso, com prémios conquistados em vários festivais de cinema fantástico, como o Fantasporto, mas também a experiência de viver com um empréstimo bancário. Os pais ajudaram-no a produzir o filme com o dinheiro que tinham guardado para lhe comprar uma casa - o empréstimo bancário foi para a casa, que ainda está a pagar.

"Fui aprendendo a gerir a minha própria profissão de forma a gerir essa renda e a renda da minha casa. Não me quero fazer de vítima, foi premeditado e é um luxo eu poder ter essa opção, o que significa que, bem ou mal, eu ainda consigo dedicar-me o suficiente para poder dar aulas e concertos que me permitam ter estes desvarios."

Filipe Melo sentou-se na cadeira de realizador para o seu projecto não-musical seguinte, "Um Mundo Catita", uma série de televisão de seis episódios uma biografia ficcionada de Manuel João Vieira mas já com outro tipo de referências, como "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman - na abertura de um dos episódios, Vieira joga xadrez com a morte e fala sueco - ou "O Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene - uma cena em que também entra João Manuel Serra, o "senhor do adeus" que cumprimenta as pessoas na zona do Saldanha, em Lisboa, e com quem Filipe Melo mantém um blogue a relatar as suas idas ao cinema.

"Foi uma experiência intensa para o bem e para o mal. Foi o maior que fiz até agora", conta. "Um Mundo Catita" foi, no entanto, difícil de vender. Após a sua produção em 2007, a série andou num limbo em que não conseguia arranjar um canal para o exibir, o que só aconteceu em 2009, na RTP2. Depois, Filipe Melo teve propostas para se manter como realizador na televisão, mas nenhuma delas lhe agradou, porque as ideias não eram dele.

Lobisomens e nazis

Nas 120 páginas de "Dog Mendonça" há provas das referências "eighties" e fantásticas de Filipe Melo. Um exemplo: página 13, um cartaz de "The Thing", de John Carpenter e o boneco Marshmallow Man de "Ghostbusters". Um plágio assumido em forma de homenagem. "Vamos roubar, mas vamos roubar aos melhores", admite.

Até o tipo de letra do título encerra em si uma referência. Aquelas letras coloridas não enganam: são de "Regresso ao Futuro". Se quisermos ser mais rebuscados, diríamos que é roubado a "Howard e o Destino do Mundo", um dos grandes "flops" da história do cinema, produzido por George Lucas. "Também lá moram tributos à banda desenhada e aos 'comics', com duas referências em destaque, 'Dylan Dog', uma BD italiana de terror, e 'Hellboy', de Mike Mignola, sobre um demónio que investiga assuntos paranormais."

Filipe Melo é apenas o argumentista porque desenha "muito mal". Na verdade, "Dog Mendonça" é uma produção luso-argentina, em que a arte é da responsabilidade de um jovem argentino de 25 anos, Juan Cavia, que nunca tinha feito BD - foi director artístico de "El Secreto de tus Ojos", filme argentino que está nomeado este ano para o "scar de melhor filme estrangeiro - e que Filipe Melo nunca conheceu pessoalmente. A comunicação era feita por Skype, "e-mail", tudo o que a tecnologia pode fazer para juntar pessoas de continentes diferentes.

Apesar da distância, Filipe Melo ficou contente com o resultado. "A relação objectivo-resultado é o melhor do que qualquer coisa que eu já tinha feito. Fico contente por ver qualquer coisa que não foi corrompida, em que não tive de fazer concessões", diz Filipe Melo, que já tem ideias para uma segunda parte, cujo título será "Apocalipse", maior em tudo, já que não tem de pensar como se fosse um filme - já agora, quando "Dog Mendonça" ainda era um filme, Filipe Melo tinha duas hipóteses para ser o João Vicente "Dog" Mendonça, investigador do oculto e adepto do Benfica: Nicolau Breyner e Manuel João Vieira.

Mais uma vez, foi Filipe Melo quem bancou a produção do projecto e não tem ilusões quanto a recuperar o investimento. "Não vou ganhar dinheiro com isto, juro! [risos] Queria contar uma história", diz o autor, que chegou a encarar a hipótese de lançar o livro em edição de autor depois de a sua primeira editora ter mudado de ideias e antes de conseguir o apoio da Tinta da China para a impressão, promoção e distribuição.

Não há um limite mínimo de vendas para Melo avançar com a parte dois de "Dog Mendonça", mas não deixa de ser uma aposta arriscada lançar um objecto com zombies, nazis, mutantes e lobisomens num país que nunca se distinguiu muito na produção de fantástico. "Acredito que há uma grande paixão por este género cá que ainda não foi devidamente explorada. Nunca faltou imaginação aos portugueses e isso vai começar a manifestar-se agora, há uma geração que está agora a trabalhar e que é uma geração que tem este imaginário, é inevitável que haja uma revolução. Acho que as pessoas têm alguma vontade de ver monstros, pelo menos tenho essa fé."

Pergunta final: que monstro seria Filipe Melo? "Júri do 'Ídolos'. Haverá monstro mais arrepiante que esse?"