Esta nossa noite que nunca mais acaba

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Ainda não vimos nada do que "Tambores na Noite" é capaz e já vimos a parte que nos interessa: é antes de as cortinas se abrirem, quando olhamos para cima e lemos "África" sem conseguirmos deixar de pensar que esse é o sítio onde começa - e sobretudo onde acaba - toda uma aventura portuguesa.

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Ainda não vimos nada do que "Tambores na Noite" é capaz e já vimos a parte que nos interessa: é antes de as cortinas se abrirem, quando olhamos para cima e lemos "África" sem conseguirmos deixar de pensar que esse é o sítio onde começa - e sobretudo onde acaba - toda uma aventura portuguesa.

Também é o sítio onde começa, mas não onde acaba, a peça que Bertolt Brecht escreveu quando os anos 20 ainda mal se tinham instalado na Europa com toda a tralha da ressaca do primeiro pós-guerra e da revolução bolchevique, e que é o primeiro Brecht da vida do Teatro Nacional S. João (TNSJ), a partir de hoje. Voltamos a olhar para cima, e a ler "África", e então é como se abríssemos uma porta dos fundos no texto e passássemos a participar numa história que, não o sendo, também é nossa (como Angola, noutros tempos).

Escrita em cima do cadáver da revolução espartaquista alemã de 1918-1919, numa altura em que Brecht estava longe de fixar os termos do seu teatro didáctico e de o pôr ao serviço do comunismo internacional, "Tambores na Noite" não tem nada a ver connosco e no entanto há um homem que passa anos desaparecido e que quando regressa já não tem lugar. Não vimos isto em qualquer lado: vimos isto num texto fundador do nosso teatro (e da própria ideia de um teatro nacional), o "Frei Luís de Sousa" de Almeida Garrett, onde também havia um homem que respondia "ninguém" quando lhe perguntavam quem és tu.

Aqui esse homem é Andreas Kragler (Paulo Freixinho), que traz areia nas botas e parte os copos quando bebe, porque não há maneira de estar aqui sem estragar a mesa posta para um jantar onde não há lugar para ele, e a festa de casamento de uma mulher que já foi dele (Anna Balicke, que aqui é Sara Carinhas), mas que entretanto se deitou na cama com outro (Friedrich Murk, que aqui é Pedro Almendra), enquanto ele se deitava no esterco.

Nuno Carinhas, que de certa maneira também está de regresso a casa, mas desta vez para ficar - é o novo director artístico do TNSJ, herdando um teatro que ele próprio ajudou a construir como encenador praticamente residente e convidado regularíssimo de Ricardo Pais -, tem a cabeça nele. "O tema do regressado é-me muito caro, e provavelmente é mesmo o tema que mais me interessa hoje em dia. Os últimos anos produziram uma carrada de filmografia sobre a guerra do Iraque e os seus regressados, mas em Portugal é um tema que não foi inscrito depois do fim da guerra colonial e do fim da censura, apesar de estar no teatro desde o 'Frei Luís de Sousa' - e é um tema brutal", diz ao Ípsilon no final de mais um ensaio, a uma semana da estreia.

É brutal visto assim de frente, como Brecht quer que o vejamos - sem simpatizar demasiado com Kragler, que tinha tudo para ser o nosso herói e afinal é um pequeno-burguês igual aos outros, muito rápido a meter o socialismo na gaveta quando descobre que ainda tem "uma camisa limpa" (e uma rapariga, mesmo que grávida de um homem que veio "de baixo", "um jeito aqui e um jeito ali" como a Alemanha, "nem sempre de luvas nas mãos").

Nuno Carinhas olha para ele "sem fazer a apologia de nada": "Nem a apologia do Kragler como herói, nem a apologia do Kragler como anti-herói. O Kragler é uma contradição, e se optarmos por simpatizar, ou por antipatizar, com ele estamos de alguma maneira a privar-nos dessa contradição."

Foi o que Brecht fez, quando voltou a olhar para o que tinha escrito no início dos anos 20 e encontrou "este falso proletário, revolucionário fatal que sabotou a revolução, aquele que Lenine combateu mais do que combateu os burgueses assumidos (...), um revolucionário que graças à compaixão voltou a possuir bens, que choramingou, fez barulho e regressou a casa depois de obter o que lhe faltava", e fez mal. "O Brecht era muito vitalista e, agora que penso nisso, acho que provavelmente o Kragler estava mais próximo dele do que ele quereria admitir nas suas memórias da recepção da peça. Ao longo da vida, o Brecht sempre enfrentou as coisas mas nunca se expôs de forma suicidária a nenhuma causa; procurou sempre não se fazer mal a ele próprio e, no fundo, o Kragler é um pouco assim", continua o encenador.

Fim da história

Voltamos ao que interessa - à parte em que podíamos ser nós, ali, acabados de chegar da aventura ultramarina, ou da guerra colonial, e sem uma cadeira vazia à nossa espera na sala de jantar. "Há aqui uma enorme melancolia que vem dos desejos desencontrados das personagens e que tentei agarrar na canção final do Tom Waits ['Innocent when you dream'], que me parece o mais brechtiano dos cantores, o mais narrador de histórias", explica Carinhas.

O mundo deles - o mundo de Kragler, mas também o dos revolucionários com quem ele passa esta noite em que a lua ficou vermelha - está velho de mais para tempos melhores, como de repente se diz numa frase que parece ter sido escrita para o fim da história, essa coisa que nos aconteceu nos anos 90, e não para o tempo em que essa história estava só a começar? "Isso é alguém a arranjar uma metáfora para o mundo que no fundo é uma metáfora de si próprio. O Kragler está nesse estado: só optou pela revolução porque já não tem nada a perder e isso empurra-o para a frente dos tiros. É muito interessante como esta noite corresponde a arcos de vida: é a noite em que a Anne envelhece, em que o Kragler rejuvenesce, há aqui cruzamentos de uma universalidade terrivelmente desorganizada e ao mesmo tempo terrivelmente cativante", diz Carinhas.

Esse caos, muito típico das peças de juventude de Bertolt Brecht, também faz parte da nota de intenções desta montagem com que o TNSJ se alimenta finalmente da carne de um dos dramaturgos mais iconográficos do século XX (sem que isso, sublinha o novo director artístico, seja minimamente indicativo daquilo que ele acha "que o TNSJ deve ser"): "Com o 'Baal' e o 'Na Selva das Cidades', esta é a peça do Brecht que mais me interessa. Sempre tive uma ligação muito forte com o Brecht poeta e estas peças estão mais próximas desse Brecht do que do Brecht dramaturgo - embora já estejam minadas pelo que ele vai fazer a seguir, não são ainda teatro didáctico."

Nuno Carinhas admira "a imperfeição, a estruturação irregular e a mistura de géneros" de "Tambores na Noite" - uma impureza que é tão técnica como ideológica, nesses anos em que Brecht era ainda um anarquista e não estava "ao serviço de ninguém". Colá-lo ao comunismo, aliás, é uma maneira "simplista" de o arrumar no século XX: "O Brecht deixou sempre muitas coisas em aberto: nunca foi militante com cartão, tinha a sua conta na Suíça. Não sei se ele foi ortodoxo de alguma coisa a não ser da sua obra ou da sua própria vida."

Em Berlim, a lua continua vermelha e ainda ouvimos os tambores, mas os cestos de munições estão vazios. Já sabemos onde se meteu o exército e amanhã a gritaria já terá acabado. Nada disto vai durar muito e, no entanto, é como se esta noite interminável com mortos, feridos e recém-nascidos tivesse vindo para ficar.

Não sabemos exactamente o que se sente quando se está lá - mas sabemos o que se sente na manhã seguinte.