Onde pára o Captain Kirk?

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Foi na década de 80. O país vinha de uma ditadura, queria abrir-se à modernidade, uma nova geração agitava-se, a pop irrompia, a moda dava os primeiros passos e o Bairro Alto transformava-se no novo centro da Lisboa boémia e culta.

Em espaços como o Frágil, Três Pastorinhos, Rockhouse (depois Juke Box), Café Concerto, Nova ou Keops, a arquitectura, a música, o design, a moda, o jornalismo, a dança, copos, corpos e muitas conversas cruzavam-se, fazendo desses espaços uma mistura de sociabilização do prazer e de produção artística.

Apesar da propensão portuguesa para passar ao lado da História - talvez porque não vivamos, autenticamente, as histórias - já muito foi dito sobre essa época. Por ter sido iniciática é também hoje algo idealizada. Por ter sido relevante, muitos dos que a fizeram acontecer estão hoje no poder, o real ou o de influência.

A meio dos anos 80, a Lisboa artística e boémia descia de braço dado e misturava-se com a Lisboa castiça do Cais do Sodré e do mercado da Ribeira nas "Noites Longas", ao Largo Conde Barão, Santos, num charmoso mas decadente palacete do século XVI, que mais tarde viria a hospedar o B. Leza. Ali comia-se tardiamente, discutiam-se projectos, dançava-se no salão, fazia-se a festa.

Dez anos depois, a meio dos anos 90, a festa já não tinha a mesma exuberância. Não podia ter. O Frágil, desde sempre o símbolo do Bairro, já não possuía a mesma aura. Algo se havia perdido. Mas em Dezembro de 1995, surgiu, no momento certo, o Captain Kirk, no número 121 da Rua do Norte, onde hoje está um bar latino.

Na altura poucos o terão percebido assim, mas aquele lugar incorporou um desejo de mudança, como se fosse a manifestação de uma verdade que já existia antes, mas que ninguém ainda expressara. Era o prolongamento da ideia de bar boémio e cultural que havia feito a fama do Frágil, mas era outra coisa.

Os locais nocturnos em voga nesse período personificavam um modelo consolidado, com desejo de sumptuosidade. No Kirk prevalecia a informalidade e até alguma vulgaridade que, afinal, era também afirmação estética. Havia vontade de desenvolver algo de diferente, ao nível das tendências e dos comportamentos, mesmo se nem sempre fosse nítido o que era.

Não era um espaço grande. Mas não é por aí que se mede a sua influência. Todas as noites eram iguais e distintas (seguindo a lógica dos clubes britânicos com sessões temáticas todos os dias). Ao final da tarde havia sessões de cinema e ali se legitimou a actividade do DJ como em nenhum outro sítio da época. Isolados, nenhum destes factores era novo. A novidade era essas especificidades estarem reunidas num único lugar, condensado a vontade dos que achavam que o Bairro dos anos 80 havia cristalizado e de uma geração mais nova que retinha a energia adolescente dos que querem que o mundo fosse seu - agora.

Dois anos alucinantes

O Kirk durou pouco. Talvez não pudesse ser de outra forma, diz o realizador Jorge Cramez, na casa dos 40 anos, espécie de "dono honorário", como gosta de afirmar. Em sua casa, olhando para uma foto de Marilyn Monroe, não resiste à analogia: "Penso nela ou no [James] Dean como metáforas. Viveram o tempo certo para deixarem rasto. O Kirk também. Viveu o tempo certo para ficar qualquer coisa. Se ainda existisse, seria apenas mais um. Aquela potência esgotou-se. Só podia. Aqueles dois anos foram alucinantes!"

Os proprietários do espaço eram Tiago Vaz, que trabalhara durante anos no bar Nova e que hoje está retirado, e o belga Gilluu Leroy, que se dedica à restauração na Tailândia. Recuperaram uma velha casa, transformando-a num bar dançante. Não era grande, mas foi optimizado. À direita, uma máquina de flipers, à esquerda mesas, rodeando uma pista de dança circular, um balcão corrido e oito televisores. Não havia grande sofisticação, mas os clientes dos primeiros tempos não se importavam.
"No primeiro ano, foi um acontecimento em Lisboa", recorda Cramez, "agregando pessoas do Frágil, e de outros espaços, ligadas às artes, dança, cinema, jornalismo ou moda. Depois, funcionou o boca-a-boca. Inicialmente, os ciclos de cinema ao final da tarde deram-lhe visibilidade, tornando-o em algo mais do que sítio de copos. Às sete da tarde podia ver-se retrospectivas de realizadores de referência. Quase sem querer, em pouco mais de seis meses, era 'o' sítio de Lisboa."

Ia-se ao Kirk para se ver e ser visto. Mas ali, até pela configuração do espaço, a pose de "ver o ambiente" não funcionava. "Quem ia lá, ia lá mesmo", lembra Ricardo Montas, 38 anos, designer, a viver hoje em Londres. "Não era um espaço onde se fosse descontrair. Tinha que se estar lá, mesmo."
"O Kirk representa a essência do Bairro, a capacidade de num espaço pequeno haver pessoas diferentes. Tanto havia o pessoal artístico como as pessoas que só queriam dançar, numa mistura de pessoas mais velhas e novas."

Montas veio dos arredores de Leiria para estudar em Lisboa. O Kirk foi a segunda escola. "Passei lá muitas noites e finais de tarde a ver cinema e a discutir o que se via. Foi determinante para mim ter conhecido ali uma série de gente. Foi o Kirk que me integrou em Lisboa. E foi dali que abri olhos para o mundo."

À porta estava a figurinista Isabel Peres ou Vanessa Rato, hoje jornalista do PÚBLICO. Ao balcão encontrava-se, inicialmente, DJ Rui Murka, actualmente com 36 anos. "Tinha 22 anos, naquele espaço respirava-se qualquer coisa de novo e queria fazer parte daquilo. Era uma excitação ir para lá. Havia sempre muita gente, aquilo não parava. Estava sempre ansioso por ir trabalhar. Fazia parte de um grupo de pessoas que se queria afirmar e que sentia que aquele era o espaço onde estavam as coisas a acontecer."

O tempo deu-lhe razão. Nessa época movimentavam-se uma série de DJs que queriam legitimar novas sonoridades para lá da lógica da música de dança mais funcional (house e tecno) que predominava. O Kirk funcionou como catalisador. Foi ali que despontaram, ou tiveram oportunidade de evoluir, nomes hoje firmados da cultura DJ portuguesa como Tiago Miranda (Loosers, Dezperados, Pop Dell' Arte, Slight Delay), Dinis, Nuno Rosa (Pink Boy, Dezperados) ou Rui Murka. Foi também ali que o colectivo CoolTrain Crew (Johnny, Murka, Dinis, Rosa, Miranda e eu próprio) deu os primeiros passos, antes de iniciar residência no Ciclone (ex-Johnny Guitar) e transitar pelo resto do país.

Todos esses nomes, em conjunto com outros, como os residentes Lígia Pereira ou Rui Viana (sonoplasta), criaram a imagem sónica do Kirk, misto de linguagens em afirmação na época, do drum & bass ao jazz mais dançável, até noites ecléticas onde tudo podia acontecer. Uma vontade de surpreender que chegou a ser elogiada na revista inglesa "The Face". O sociólogo, músico e artista, António Contador, 38 anos, hoje em Paris, também por lá andava.

Às vezes como cliente, outras na cabine de DJ. Para ele foram anos importantes. "O ar do Rui Viana fascinava-me e deu-me o tom para o que eu queria fazer com discos. Recordo-me das noites Pimp-Pop, ao domingos, em que ele e o Tiago Vaz misturavam piroseiras num espírito embriagador, com aquele cheiro a tabaco e a bafio por todo o lado que se colava à pele e era maravilhoso. Lembro-me da Isabel Peres e da Vanessa Rato na porta, adornavam com o seu ar 'arty-trashy' a cena toda que girava à volta do Kirk e que era naquela altura o centro do universo criativo lisboeta. Não tenho dúvidas disso."

Algumas das noites mais emblemáticas do lugar não aconteciam aos fins-de-semana. A dinâmica era diferente da actual. "Não havia tanta oferta", reflecte Murka, "e as pessoas concentravam-se mais num circuito, contribuindo para que todos os dias existisse alguma animação. Havia uma grande dinâmica e aos domingos, segundas ou terças havia pessoas para se divertirem."

Uma das imagens que ainda hoje perdura é a dos televisores. "Era singular um bar daqueles ter tanta informação visual, com uma dezena de televisores a passar coisas diversas - documentários, coisas ligadas à arte ou fitas clássicas", conta Cramez, que fazia a programação de cinema, recordando uma noite em que decidiram passar uma série de filmes eróticos nos televisores.

O Kirk era um espaço que libertava uma energia excessiva. Como os melhores espaços nocturnos, não era apenas um bar ou uma discoteca. Era um organismo vivo e como muitos locais cuja validade reside na vitalidade que desencadeiam não se aguentou muito tempo. "Havia muita avidez, para o bem e para o mal, na forma como aquele ambiente se consumia e, às tantas, começou a ser o ambiente a consumir algumas pessoas", diz Rui Murka. "Havia tantos exageros que era impossível manter aquele negócio. Simplesmente não havia cabeça para tal."
Certa noite, uma dúzia de pessoas, entre empregados e clientes, foi parar à esquadra e, depois, presentes a tribunal. Acusação: distúrbios à ordem pública. O facto nada teve de extraordinário, efeito de uma discussão acalorada entre empregados, clientes e polícia, pelo facto do bar ainda conter pessoas depois das quatro da manhã, mas Murka assinala o sucedido como marcante. "Foi apenas um episódio, mas deu início ao declínio. O primeiro ano foi incrível, culminou numa festa na Caixa Económica Operária. Foi um ano intenso, com cultura, diversão e sentido lúdico, mas depois começaram os exageros com os consumos ilícitos e as pessoas responsáveis perderam o controlo à coisa."

O último com aura

O bar Captain Kirk, nome de herói do Caminho das Estrelas, imortalizado na canção "Where's Captain Kirk?" do grupo punk Spizzenerg!, surgiu num tempo de transição do Bairro Alto.

Recebeu a herança dos anos 80, atribuindo-lhe nova energia, generosa mas desmesurada, ao mesmo tempo que já prenunciava os novos tempos. A fase de empobrecimento do Kirk coincide já com a ocupação das ruas do Bairro Alto, que começou a ser vivido no exterior e não no interior. Para muitos, como para Ricardo Montas, foi o último dos bares icónicos do Bairro a ter essa aura de mistério. "Quando entrava naquele sítio, perguntava-me sempre: 'o que vou encontrar desta vez?'"
"Cada pessoa procurava uma coisa diferente", responde Murka. "Alguns, os ciclos de cinema, outros a música - era ali que se ouvia a mais arrojada da altura - e todos eles, a diversão."

A jornalista Maria João Guardão evoca o espaço de forma lapidar: "falar, falar, falar, beber, beber, beber, dançar, dançar, dançar, e tudo, outra e outra vez". Cramez diz que foi o único sítio onde esteve que "suportava que estivesse completamente cheio. Era o cantinho onde tudo se passava." António Contador recorda-nos que um local daqueles também é espaço de afectos: "Lembro-me tão bem das pessoas que trabalhavam no Kirk, em especial da Cikuta. Para mim, o Kirk era muito ela. Nunca lho disse e adorava fazê-lo. Lembro-me do seu corpo esguio, das mãos finas e compridas, do cabelo curto e do rosto e sorriso à Grace Jones. Cikuta, se me estás a ler, fica sabendo que foste linda e seguramente ainda és." Se souberem onde ela pára, digam-lhe.

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Foi na década de 80. O país vinha de uma ditadura, queria abrir-se à modernidade, uma nova geração agitava-se, a pop irrompia, a moda dava os primeiros passos e o Bairro Alto transformava-se no novo centro da Lisboa boémia e culta.

Em espaços como o Frágil, Três Pastorinhos, Rockhouse (depois Juke Box), Café Concerto, Nova ou Keops, a arquitectura, a música, o design, a moda, o jornalismo, a dança, copos, corpos e muitas conversas cruzavam-se, fazendo desses espaços uma mistura de sociabilização do prazer e de produção artística.

Apesar da propensão portuguesa para passar ao lado da História - talvez porque não vivamos, autenticamente, as histórias - já muito foi dito sobre essa época. Por ter sido iniciática é também hoje algo idealizada. Por ter sido relevante, muitos dos que a fizeram acontecer estão hoje no poder, o real ou o de influência.

A meio dos anos 80, a Lisboa artística e boémia descia de braço dado e misturava-se com a Lisboa castiça do Cais do Sodré e do mercado da Ribeira nas "Noites Longas", ao Largo Conde Barão, Santos, num charmoso mas decadente palacete do século XVI, que mais tarde viria a hospedar o B. Leza. Ali comia-se tardiamente, discutiam-se projectos, dançava-se no salão, fazia-se a festa.

Dez anos depois, a meio dos anos 90, a festa já não tinha a mesma exuberância. Não podia ter. O Frágil, desde sempre o símbolo do Bairro, já não possuía a mesma aura. Algo se havia perdido. Mas em Dezembro de 1995, surgiu, no momento certo, o Captain Kirk, no número 121 da Rua do Norte, onde hoje está um bar latino.

Na altura poucos o terão percebido assim, mas aquele lugar incorporou um desejo de mudança, como se fosse a manifestação de uma verdade que já existia antes, mas que ninguém ainda expressara. Era o prolongamento da ideia de bar boémio e cultural que havia feito a fama do Frágil, mas era outra coisa.

Os locais nocturnos em voga nesse período personificavam um modelo consolidado, com desejo de sumptuosidade. No Kirk prevalecia a informalidade e até alguma vulgaridade que, afinal, era também afirmação estética. Havia vontade de desenvolver algo de diferente, ao nível das tendências e dos comportamentos, mesmo se nem sempre fosse nítido o que era.

Não era um espaço grande. Mas não é por aí que se mede a sua influência. Todas as noites eram iguais e distintas (seguindo a lógica dos clubes britânicos com sessões temáticas todos os dias). Ao final da tarde havia sessões de cinema e ali se legitimou a actividade do DJ como em nenhum outro sítio da época. Isolados, nenhum destes factores era novo. A novidade era essas especificidades estarem reunidas num único lugar, condensado a vontade dos que achavam que o Bairro dos anos 80 havia cristalizado e de uma geração mais nova que retinha a energia adolescente dos que querem que o mundo fosse seu - agora.

Dois anos alucinantes

O Kirk durou pouco. Talvez não pudesse ser de outra forma, diz o realizador Jorge Cramez, na casa dos 40 anos, espécie de "dono honorário", como gosta de afirmar. Em sua casa, olhando para uma foto de Marilyn Monroe, não resiste à analogia: "Penso nela ou no [James] Dean como metáforas. Viveram o tempo certo para deixarem rasto. O Kirk também. Viveu o tempo certo para ficar qualquer coisa. Se ainda existisse, seria apenas mais um. Aquela potência esgotou-se. Só podia. Aqueles dois anos foram alucinantes!"

Os proprietários do espaço eram Tiago Vaz, que trabalhara durante anos no bar Nova e que hoje está retirado, e o belga Gilluu Leroy, que se dedica à restauração na Tailândia. Recuperaram uma velha casa, transformando-a num bar dançante. Não era grande, mas foi optimizado. À direita, uma máquina de flipers, à esquerda mesas, rodeando uma pista de dança circular, um balcão corrido e oito televisores. Não havia grande sofisticação, mas os clientes dos primeiros tempos não se importavam.
"No primeiro ano, foi um acontecimento em Lisboa", recorda Cramez, "agregando pessoas do Frágil, e de outros espaços, ligadas às artes, dança, cinema, jornalismo ou moda. Depois, funcionou o boca-a-boca. Inicialmente, os ciclos de cinema ao final da tarde deram-lhe visibilidade, tornando-o em algo mais do que sítio de copos. Às sete da tarde podia ver-se retrospectivas de realizadores de referência. Quase sem querer, em pouco mais de seis meses, era 'o' sítio de Lisboa."

Ia-se ao Kirk para se ver e ser visto. Mas ali, até pela configuração do espaço, a pose de "ver o ambiente" não funcionava. "Quem ia lá, ia lá mesmo", lembra Ricardo Montas, 38 anos, designer, a viver hoje em Londres. "Não era um espaço onde se fosse descontrair. Tinha que se estar lá, mesmo."
"O Kirk representa a essência do Bairro, a capacidade de num espaço pequeno haver pessoas diferentes. Tanto havia o pessoal artístico como as pessoas que só queriam dançar, numa mistura de pessoas mais velhas e novas."

Montas veio dos arredores de Leiria para estudar em Lisboa. O Kirk foi a segunda escola. "Passei lá muitas noites e finais de tarde a ver cinema e a discutir o que se via. Foi determinante para mim ter conhecido ali uma série de gente. Foi o Kirk que me integrou em Lisboa. E foi dali que abri olhos para o mundo."

À porta estava a figurinista Isabel Peres ou Vanessa Rato, hoje jornalista do PÚBLICO. Ao balcão encontrava-se, inicialmente, DJ Rui Murka, actualmente com 36 anos. "Tinha 22 anos, naquele espaço respirava-se qualquer coisa de novo e queria fazer parte daquilo. Era uma excitação ir para lá. Havia sempre muita gente, aquilo não parava. Estava sempre ansioso por ir trabalhar. Fazia parte de um grupo de pessoas que se queria afirmar e que sentia que aquele era o espaço onde estavam as coisas a acontecer."

O tempo deu-lhe razão. Nessa época movimentavam-se uma série de DJs que queriam legitimar novas sonoridades para lá da lógica da música de dança mais funcional (house e tecno) que predominava. O Kirk funcionou como catalisador. Foi ali que despontaram, ou tiveram oportunidade de evoluir, nomes hoje firmados da cultura DJ portuguesa como Tiago Miranda (Loosers, Dezperados, Pop Dell' Arte, Slight Delay), Dinis, Nuno Rosa (Pink Boy, Dezperados) ou Rui Murka. Foi também ali que o colectivo CoolTrain Crew (Johnny, Murka, Dinis, Rosa, Miranda e eu próprio) deu os primeiros passos, antes de iniciar residência no Ciclone (ex-Johnny Guitar) e transitar pelo resto do país.

Todos esses nomes, em conjunto com outros, como os residentes Lígia Pereira ou Rui Viana (sonoplasta), criaram a imagem sónica do Kirk, misto de linguagens em afirmação na época, do drum & bass ao jazz mais dançável, até noites ecléticas onde tudo podia acontecer. Uma vontade de surpreender que chegou a ser elogiada na revista inglesa "The Face". O sociólogo, músico e artista, António Contador, 38 anos, hoje em Paris, também por lá andava.

Às vezes como cliente, outras na cabine de DJ. Para ele foram anos importantes. "O ar do Rui Viana fascinava-me e deu-me o tom para o que eu queria fazer com discos. Recordo-me das noites Pimp-Pop, ao domingos, em que ele e o Tiago Vaz misturavam piroseiras num espírito embriagador, com aquele cheiro a tabaco e a bafio por todo o lado que se colava à pele e era maravilhoso. Lembro-me da Isabel Peres e da Vanessa Rato na porta, adornavam com o seu ar 'arty-trashy' a cena toda que girava à volta do Kirk e que era naquela altura o centro do universo criativo lisboeta. Não tenho dúvidas disso."

Algumas das noites mais emblemáticas do lugar não aconteciam aos fins-de-semana. A dinâmica era diferente da actual. "Não havia tanta oferta", reflecte Murka, "e as pessoas concentravam-se mais num circuito, contribuindo para que todos os dias existisse alguma animação. Havia uma grande dinâmica e aos domingos, segundas ou terças havia pessoas para se divertirem."

Uma das imagens que ainda hoje perdura é a dos televisores. "Era singular um bar daqueles ter tanta informação visual, com uma dezena de televisores a passar coisas diversas - documentários, coisas ligadas à arte ou fitas clássicas", conta Cramez, que fazia a programação de cinema, recordando uma noite em que decidiram passar uma série de filmes eróticos nos televisores.

O Kirk era um espaço que libertava uma energia excessiva. Como os melhores espaços nocturnos, não era apenas um bar ou uma discoteca. Era um organismo vivo e como muitos locais cuja validade reside na vitalidade que desencadeiam não se aguentou muito tempo. "Havia muita avidez, para o bem e para o mal, na forma como aquele ambiente se consumia e, às tantas, começou a ser o ambiente a consumir algumas pessoas", diz Rui Murka. "Havia tantos exageros que era impossível manter aquele negócio. Simplesmente não havia cabeça para tal."
Certa noite, uma dúzia de pessoas, entre empregados e clientes, foi parar à esquadra e, depois, presentes a tribunal. Acusação: distúrbios à ordem pública. O facto nada teve de extraordinário, efeito de uma discussão acalorada entre empregados, clientes e polícia, pelo facto do bar ainda conter pessoas depois das quatro da manhã, mas Murka assinala o sucedido como marcante. "Foi apenas um episódio, mas deu início ao declínio. O primeiro ano foi incrível, culminou numa festa na Caixa Económica Operária. Foi um ano intenso, com cultura, diversão e sentido lúdico, mas depois começaram os exageros com os consumos ilícitos e as pessoas responsáveis perderam o controlo à coisa."

O último com aura

O bar Captain Kirk, nome de herói do Caminho das Estrelas, imortalizado na canção "Where's Captain Kirk?" do grupo punk Spizzenerg!, surgiu num tempo de transição do Bairro Alto.

Recebeu a herança dos anos 80, atribuindo-lhe nova energia, generosa mas desmesurada, ao mesmo tempo que já prenunciava os novos tempos. A fase de empobrecimento do Kirk coincide já com a ocupação das ruas do Bairro Alto, que começou a ser vivido no exterior e não no interior. Para muitos, como para Ricardo Montas, foi o último dos bares icónicos do Bairro a ter essa aura de mistério. "Quando entrava naquele sítio, perguntava-me sempre: 'o que vou encontrar desta vez?'"
"Cada pessoa procurava uma coisa diferente", responde Murka. "Alguns, os ciclos de cinema, outros a música - era ali que se ouvia a mais arrojada da altura - e todos eles, a diversão."

A jornalista Maria João Guardão evoca o espaço de forma lapidar: "falar, falar, falar, beber, beber, beber, dançar, dançar, dançar, e tudo, outra e outra vez". Cramez diz que foi o único sítio onde esteve que "suportava que estivesse completamente cheio. Era o cantinho onde tudo se passava." António Contador recorda-nos que um local daqueles também é espaço de afectos: "Lembro-me tão bem das pessoas que trabalhavam no Kirk, em especial da Cikuta. Para mim, o Kirk era muito ela. Nunca lho disse e adorava fazê-lo. Lembro-me do seu corpo esguio, das mãos finas e compridas, do cabelo curto e do rosto e sorriso à Grace Jones. Cikuta, se me estás a ler, fica sabendo que foste linda e seguramente ainda és." Se souberem onde ela pára, digam-lhe.