Handel contra a rotina

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Il Giardino Armonico, um dos mais carismáticos agrupamentos italianos especializados no repertório barroco, cumpre 25 anos em 2010, mas a rotina é palavra que não faz parte do seu vocabulário. Descoberta, experimentação e revolução são termos mais adequados para caracterizar o percurso do multipremiado grupo dirigido pelo flautista Giovanni Antonini, onde a trepidante interpretação de "As Quatro Estações", de Vivaldi (1994) ou o "Vivaldi Album", com Cecilia Bartoli (1999), para citar apenas dois dos registos mais mediáticos, marcaram definitivamente o rumo da música antiga nas últimas décadas.

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Il Giardino Armonico, um dos mais carismáticos agrupamentos italianos especializados no repertório barroco, cumpre 25 anos em 2010, mas a rotina é palavra que não faz parte do seu vocabulário. Descoberta, experimentação e revolução são termos mais adequados para caracterizar o percurso do multipremiado grupo dirigido pelo flautista Giovanni Antonini, onde a trepidante interpretação de "As Quatro Estações", de Vivaldi (1994) ou o "Vivaldi Album", com Cecilia Bartoli (1999), para citar apenas dois dos registos mais mediáticos, marcaram definitivamente o rumo da música antiga nas últimas décadas.

Falando de aniversários, em 2009 assinalam-se os 250 anos da morte de Handel e os 200 anos da morte de Haydn, efemérides que preenchem uma boa parte da agenda de Il Giardino Armonico. A gravação dos 12 "Concerti Grossi" op. 6, de Handel (uma caixa de três CDs editada pela Decca) será lançada em Portugal no final de Janeiro, mas já no próximo domingo, dia 11, será possível ouvir ao vivo, no Centro Cultural de Belém, alguns destes concertos nas versões do grupo italiano. O programa inclui ainda o famoso Concerto op. 5, nº12, "La Folia", de Geminiani, e o Concerto em Fá Maior para flauta, cordas e baixo contínuo, de Giuseppe Sammartini.

Para Giovanni Antonini, os Concertos op. 6, de Handel, são "um monumento da música barroca, com uma importância comparável à dos Concertos Brandeburgueses", de Bach, ou à colecção "L'Estro Armonico", de Vivaldi, mas têm sido subvalorizados. "Fazem parte dos nossos programas há muitos anos, pelo que o resultado desta gravação é como uma fotografia actual de um longo trabalho de aprofundamento interpretativo."

Antonini realça que cada concerto encerra "um mundo expressivo diferente" e que o conjunto constitui "uma espécie de enciclopédia das formas musicais barrocas". A interpretação procura "sublinhar a componente dramática da música, diferenciando-se da abordagem da escola inglesa, que tem vincado sobretudo a vertente celebrativa e a grandiloquência". Antonini refere que esses "são aspectos que também existem na obra de Handel - por exemplo, na "Música para os Reais Fogos de Artifício" ou no "Messias" - mas que nos Concertos op. 6 se distinguem por "uma ligeireza e uma exploração de grandes contrastes muito próxima do espírito teatral italiano". "Creio que essa dimensão poderá distinguir a nossa versão de outras, como a de Trevor Pinnock ou a de Christopher Hogwood, que sublinham mais uma beleza de carácter estetizante."

O sabor italiano não é de todo forçado, já que o concerto grosso é uma forma dramática baseada em contrastes, onde um pequeno grupo de solistas e um grupo orquestral maior estão em permanente confronto, imitação ou colaboração. Para Antonini "a música de Handel não é só dramática nas óperas, a sua teatralidade também está presente no repertório instrumental".

Identidades

Desde Abril de 2007, que Il Giardino Armonico é o grupo barroco residente do Centro Cultural Miguel Delibes de Valhadolid. A colaboração com esta instituição espanhola contemplou a gravação dos Concertos op. 6 e implica vários outros projectos relacionados com Handel e Haydn ao longo de 2009. A próxima produção será em torno das Sinfonias de Haydn do período Sturm und Drang, cujo carácter experimental vem especialmente ao encontro da linha de trabalho do grupo. "Estamos sempre interessados em música extrema, que revele uma certa ousadia experimental", diz Antonini, lamentando que o gosto pela descoberta se esteja a perder. "Nos últimos 20 ou 25 anos atingiu-se um nível técnico e de conhecimento musical muito elevado, mas em contrapartida entrou-se na rotina interpretativa. Mas nós tentamos manter o gosto pela novidade e ir evoluindo. Não queremos ficar prisioneiros de esquemas. A música antiga entrou num sistema produtivo, que é o da música clássica em geral, muito propício ao conformismo."

Há também mudanças positivas a assinalar como o interesse das instituições e das orquestras modernas pelas práticas de execução históricas. Antonini é convidado cada vez com mais frequência para dirigir agrupamentos convencionais e já chegou a actuar como flautista e maestro com a Filarmónica de Berlim. Em Março dirige a ópera "Alcina", de Handel, à frente da orquestra do Teatro alla scala de Milão, um feito digno de nota tendo em conta as tradições conservadoras da maior parte dos teatros italianos.

O trabalho com intérpretes que tocam instrumentos modernos tem sido aliciante, embora os resultados variem muito. "Depende do interesse que os músicos têm, mas quando querem mesmo aprofundar o estilo pode ser muito gratificante."

Do ponto de vista prático, as maiores dificuldades encontram-se geralmente na secção das cordas. "Tocar música barroca com um arco moderno é muito mais difícil porque está feito para outro tipo de técnica. O grande desafio é em apenas dois ou três dias de ensaio comunicar conceitos estéticos, quando os meios técnicos para os pôr em prática não são os da época", explica Antonini. "Às vezes funciona e chegamos a um terço do resultado. Não é o resultado dos instrumentos antigos nem o dos instrumentos modernos, é algo intermédio, que mesmo assim pode ter uma grande vitalidade. As orquestras modernas confrontam-se com um repertório que vai desde Vivaldi aos contemporâneos e é impossível saber fazer tudo. A nossa vida musical contempla obras de todas as épocas e devemos dividirmonos, umas vezes somos antigos, outras modernos! Esta é talvez a identidade do nosso tempo, que no fundo acaba por não ter uma identidade própria. Ou melhor, a marca do nosso tempo é ter tantas identidades diferentes."