América em ferida

Há muito tempo que não víamos uma personagem assim no cinema americano. Vamos correr o risco de ser injustos: talvez desde o Travis Bickle/Robert deNiro de "Taxi Driver" (foi em 1976, o que faz sentido).

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Há muito tempo que não víamos uma personagem assim no cinema americano. Vamos correr o risco de ser injustos: talvez desde o Travis Bickle/Robert deNiro de "Taxi Driver" (foi em 1976, o que faz sentido).

Não é que Ryan Gosling, o intérprete, faça lembrar DeNiro. Até faz, mas não é uma coisa física, nem são parecidos, nem é a mesma "escola de actores" italoamericana...

Nem aqui, em "Encurralados", primeira longa-metragem de Ryan Fleck, há taxistas a "limpar" a selva urbana (nem Ryan Fleck, já agora, é Martin Scorsese).

Há um professor, e há uma mortificação. É isso, e é isso que dá um ar de familiaridade, é o quixotesco desespero de alguns (anti)heróis americanos - e há muito tempo que não víamos a exibição desse medo no cinema americano, um abando sensual, já agora.

(Gostamos, por isso, de ter visto Paul Schrader, o argumentista de "Taxi Driver", a pôr "Encurralados" na lista que fez dos melhores do ano para a revista Film Comment; foi também efeito de reconhecimento)

Eis o professor de "Encurralados": branco, filho da classe média, ensina num gueto negro de Brooklyn. Entusiasta das revoluções, Dan explica a dialéctica do movimento histórico, desmonta as teias da sociedade, incita à revolta individual, a que os alunos agarrem as suas próprias vidas... É um adepto de que se abram as feridas - o 11 de Setembro, mas não esse, aquele outro, de 1973, em que Salvador Allende foi derrubado por um golpe de Estado no Chile apoiado pelos americanos.

E Dan nem sabe bem o que é o MP3, continua a preferir discos.

A contradição: o professor-que-todos-os-alunos-adorariam-ter é um viciado em "crack". Não há uma explicação (ainda bem que o filme não explica), não pode ser só porque os pais, ex-radicais dos anos 60, já deixaram para trás as revoluções, é mais difuso, não pode ser por isso, mas também é por isso e pelo resto, é por ele, é pela desilusão, uma qualquer falha irremediável. Dan não sabe lidar com a sua realidade como sabe expôr as suas ideias.

Seria pedir muito, nestes tempos, que "Encurralados" (adaptação para o formato longa-metragem de uma curta do realizador, "Gowanus, Brooklyn", de 2004) se entregasse totalmente a Dan. Que ficasse e fosse com ele, com os tempos da personagem, que são os tempos de uma queda - com algo de grácil.

Mas, como alguém já escreveu, a maior parte do cinema independente americano acaba sempre por dar uma palmadinha nas costas do espectador, premiando-o com narrativas de redenção. "Encurralados" vai preparando isso, ao organizar, de forma artificiosa, o encontro entre o professor e uma aluna, Drey (a estreante Shareeka Epps) - a adolescente já viu demais no gueto de violência e droga, tem no olhar uma sabedoria silenciosa, é mesmo para fazer lição de vida...

Não chega a tanto o filme, isso é bom - mas também temos que esperar para ver se, como dizia o último número da revista americana Cineaste, este filme é um espelho de um "genuíno" movimento independente a "renascer". "Encurralados" é fiel ao título original: "Half Nelson", ao que sabemos, é uma posição de imobilização no "wrestling" profissional americano em que uma das partes fica incapaz de escapar, de se mexer. Não é só Dan que fica nessa posição, é também Drey. É uma certa América. Há muito tempo que não víamos no cinema americano, mesmo no cinema "indie", uma imagem com tanta energia simbólica, com tanta vontade de escavar fundo e daí tirar um "poster" político, um punho: Dan, lábio ferido, penso curativo com as cores da bandeira.

Mas isto já não se via desde quando?

Ryan Gosling, 26 anos, ex-frequentador, como Britney Spears, imagine-se, do programa Mickey Mouse Club, e agora justíssima nomeação para o Óscar de melhor actor, é vibrante, como já se percebeu...