Argelinos votam num referendo para enterrar a guerra civil

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Esta votação é o culminar da política de reconciliação nacional do Presidente Bouteflika Mohamed Messara/EPA

O referendo é o culminar da política de reconciliação nacional que Bouteflika tem vindo a promover, numa estratégia diferente da de outros países, como a África do Sul ou Marrocos, que criaram comissões de verdade e reconciliação para enfrentarem o passado, apurarem a verdade e fecharem as feridas.

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O referendo é o culminar da política de reconciliação nacional que Bouteflika tem vindo a promover, numa estratégia diferente da de outros países, como a África do Sul ou Marrocos, que criaram comissões de verdade e reconciliação para enfrentarem o passado, apurarem a verdade e fecharem as feridas.

Mas se muitos argelinos desejam hoje ardentemente enterrar o passado, outros recusam-se a fazê-lo enquanto não houver, da parte do poder político, respostas. Há, sobretudo, uma pergunta insistentemente repetida: o que aconteceu a milhares de pessoas desaparecidas durante aquela década negra?

O que os críticos da política de reconciliação nacional afirmam é que a Carta é a forma mais fácil de não identificar culpas, de não exigir responsabilidades, de não punir e de não esclarecer o papel que as forças de segurança tiveram em muitas das mortes e dos desaparecimentos. A oposição acusa também Bouteflika de, com este referendo, pretender obter carta branca para reforçar os seus poderes e avançar para uma revisão da Constituição que lhe permitirá candidatar-se a um terceiro mandato (foi eleito em 1999 e reeleito em 2004 para mais cinco anos).

A Argélia mergulhou na violência no início dos anos 1990, quando o regime controlado pelos militares decidiu anular as eleições legislativas que iam dar a vitória aos islamistas da FIS (Frente Islâmica de Salvação). O partido foi ilegalizado, alguns dos seus dirigentes fugiram, outros foram presos, e uma ala mais radical pegou em armas e foi para as montanhas, de onde durante anos lançou ataques contra as forças de segurança, mas também contra aldeias e populações civis, massacrando homens, mulheres e crianças (calcula-se que em todo o conflito tenham morrido 120 mil pessoas).

A repressão foi feroz, mas em nome da guerra - continuam a afirmar muitos argelinos - o regime cometeu gravíssimas violações dos direitos humanos. O caso dos desaparecidos é a ferida mais profunda e que ainda hoje permanece aberta.

Uma das coisas que a Carta hoje apresentada a referendo propõe é uma amnistia para todos os islamistas que não tenham estado envolvidos em crimes de sangue. Não é a primeira iniciativa do género. Em 1999, um dos grupos armados, o Exército Islâmico de Salvação (EIS, braço armado da FIS), já tinha aceite depor as armas em troca de um perdão.

Na prática isto significa que muitos combatentes desceram das montanhas e vieram viver para as suas antigas aldeias, ao lado daqueles cujas famílias os seus companheiros de armas um dia massacraram. Vítimas e carrascos a viver lado a lado.

O que muitas famílias das vítimas rejeitam hoje é esta impunidade, mesmo que seja em nome de uma suposta "reconciliação". E, apoiadas pelos grupos de defesa dos direitos humanos, exigem "a verdade" e dizem não se contentar com as indemnizações que o Presidente se propõe pagar-lhes.

Quanto às acusações feitas aos que governaram a Argélia, o texto apresentado a referendo estabelece que "os actos repreensíveis de agentes do Estado que foram sancionados pela justiça de cada vez que foram estabelecidos não podem servir de pretexto para lançar o descrédito sobre o conjunto das forças da ordem".

No entanto, o presidente da Comissão nacional consultiva de promoção e protecção dos direitos do homem, Farouk Ksentini, reconheceu no final de Março que os "agentes do Estado" são responsáveis pelo desaparecimento de mais de seis mil pessoas entre 1992 e 1998 (o total de desaparecidos ronda os 18 mil).

Quanto aos antigos islamistas armados, muitos estão já integrados na sociedade, e apelam aos eleitores para que votem "sim" no referendo de hoje. É o caso de Mustapha Kertali, antigo presidente da Câmara eleito pela FIS em Larbaa, a Sul de Argel, mas também antigo chefe de um grupo armado, que o Libération foi encontrar na sua terra natal, ocupado em campanha pelo "sim" e a receber constantemente telefonemas de pessoas a pedirem favores a uma figura que, na Câmara ou na guerrilha, nunca deixou de ser influente.

Para as vítimas a situação é muito dolorosa. Os sobreviventes da família Chiroud, que viram 48 dos seus serem massacrados em 1997 por um grupo armado vindo das montanhas, não conseguem esconder a emoção em frente às ruínas da sua antiga aldeia. Numa voz quase inaudível, Salem Chiroud, de 50 anos, diz ao jornalista da AFP: "Esquecer? Como esquecer isto? É impossível".

Em 1997 foram abandonados à sua sorte, sem protecção das forças de segurança, perante os homens que os atacavam "sem piedade, com facas, machados, balas". Apesar disso, Salem diz que quer "perdoar, para que a minha família possa viver em paz e segurança". Pode até votar "sim" no referendo, mas esquecer, não esquecerá nunca.

Nas montanhas ainda restam alguns islamistas armados - cálculos do Ministério do Interior indicam cerca de mil homens. Depois de o Governo ter anunciado o fim do Grupo Islâmico Armado (GIA), o único que permanece activo é o Grupo Salafista para a Prédica e Combate (que ainda ontem ameaçou atacar em França). Mas estes guerrilheiros, segundo Ahmed Benaicha, antigo "emir" do EIS, querem uma "amnistia política". E, tudo indica, passarão ao lado da "reconciliação nacional".