O pequeno teatro imaginado de Lars Von Trier

"Era uma vez..." um grupo de actores e o seu anfitrião, condenados à imaginação num espaço fechado. Dezasseis actores, um palco e seis semanas de rodagem - eram estes os desafios do jogo.

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"Era uma vez..." um grupo de actores e o seu anfitrião, condenados à imaginação num espaço fechado. Dezasseis actores, um palco e seis semanas de rodagem - eram estes os desafios do jogo.

Porque é que eles - Nicole Kidman, Paul Bethany, Lauren Bacall, James Caan, Chloe Sevigny, Stellan Skarsgard, Jeremy Davies, Harriet Andersson ou Ben Gazarra - foram à Suécia, só eles o saberão. Mas podemos adivinhar que, para além do peso do nome de Lars von Trier, das expectativas mediáticas (e o que isso traria de visibilidade para a vontade de protagonismo de alguns) e da faceta de proeza a que o projecto se abria, houve um desejo de risco e de jogo infantis - os actores, eles o dizem, gostam de se rever na pureza das crianças.

O que eles encontraram em Trollhatan podemos ter uma ideia em "Dogville Confessions": algo entre o fascínio e a decepção; com o desnorte pelo meio. O documentário de Sami Saif encontrou um dispositivo de "confessionário", como uma espécie de Big Brother nórdico (mas mais como uma "caixa da verdade" com sinalização católica - Lars descobriu-se, mais ou menos recentemente, católico), onde os actores deviam entrar para carpir as suas mágoas e outras frustrações. Eis Nicole, confusa: "Às vezes Lars é um pouco duro comigo, ajudem-me, isto é muito estranho"; Lauren Bacall, naturalmente soberba: "Lars não se sente à vontade comigo. É uma pena. Pode ser que algum dia consiga"; Stellan Skarsgard, revelador: "Quando li o argumento, pensei numa criança sobredotada [Lars, claro] a brincar com uma casa de bonecas e a cortar a cabeça dos bonecos"; Ben Gazarra, sem mais: "Perdoai-me Senhor, porque tinha prometido não voltar a trabalhar com um realizador louco!"

Todos eles acabaram por permitir a fantasia de Lars de simular um pequeno grupo de teatro amador. E de se ver como anfitrião. A sensação de perda foi tanto de uns como de outro, porque Lars teve de enfrentar o facto de não conseguir responder a todas as solicitações do "cast" - já confessou que se sentiu culpado por ter convocado um enorme actor como Philip Baker Hall para, no fim de contas, não lhe dar muito mais a fazer do que um livro de Mark Twain para ler. Mas, como tudo o resto no projecto "Dogville", do que se trata aqui, fundamentalmente, é de um contrato com a imaginação. E esse espaço é mais distinto na versão dita "longa" - e aquela que melhor corresponde ao sonho de Lars: "Gosto daquelas peças de conjunto, que se sentem todas as personagens e não estamos reféns apenas do que se passa na cabeça de uma personagem a observar um mundo estranho através dos olhos dela, mas, em vez disso, conhecemos todas as personagens daquele mundo."

Podemos individualizar blocos que foram amputados da versão curta - por exemplo, que estendem a relação entre as personagens de Kidman e de Skarsgard; ou que alongam o debate final entre Grace e o pai, acentuando o desenlace filosófico imposto às personagens. Mas o mais decisivo são as "cenas inúteis", de quotidiano da cidade americana - as que inevitavelmente são as primeiras a saltar quando é preciso cortar. Por exemplo, Lauren Bacall a varrer o chão. Vendo-a (a ela e a Gazarra ou a Jeremy Davies), inevitavelmente perguntamos: foi para isto que foram até à Suécia? (questão que a decidida Bacall nunca escamoteou; já disse que aceitou participar em "Dogville" porque não tinha nada a fazer a não ser varrer o chão). É que não se trata, então, de filmar personagens (interpretadas por actores) de uma narrativa, mas de criar um espaço de vacilação, de fissura, uma densidade mais rugosa: filmar um grupo (actores com "aura" reconhecível) no jogo, inevitavelmente frustrado, de procurar as suas personagens numa narrativa que parece ser sempre mais imaginada do que real. E Lars von Trier, com o complexo dispositivo (a que por facilidade chamamos "câmara") que lhe permite colar-se aos actores (vê-se em "Dogville Confessions", parece um monstro intruso) consegue tactear esse processo, invisível, íntimo, que é o contrato de imaginação estabelecido por um intérprete.

O filme também propõr um contrato assim com o espectador. Vamos imaginar? Quem vir um alce, ou outro animal daqueles que aparece nas fábulas cobertas de neve, não se enganou...