ModaLisboa: Vestidos para a guerra?

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Nos últimos tempos contestou-se - com camuflados e calças militares. Hoje, quando a 20ª edição da Moda Lisboa começar, às 18h, no grande Armazém Terlis, em Alcântara (até domingo), 16 criadores nacionais vão mostrar o que será o pós-guerra através das suas colecções Outono/Inverno 2004.

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Nos últimos tempos contestou-se - com camuflados e calças militares. Hoje, quando a 20ª edição da Moda Lisboa começar, às 18h, no grande Armazém Terlis, em Alcântara (até domingo), 16 criadores nacionais vão mostrar o que será o pós-guerra através das suas colecções Outono/Inverno 2004.

Numa breve ronda telefónica, quase metade dos participantes neste que é o maior evento dedicado em Lisboa à criação de moda, confessam que as suas novas colecções foram influenciadas pelo contexto de instabilidade que tem vindo a instalar-se internacionalmente desde os ataques do 11 de Setembro.

Há uns meses, quando estas colecções foram concebidas, a guerra não tinha ainda data marcada, mas os sinais de indefinição e mudança eram inequívocos e estavam já a influir a moda há pelo menos três estações, dizem os criadores.

Os camuflados, que começaram por ser usados por civis nos anos 70 nas manifestações de contestação à guerra do Vietname - e que entretanto se tinham tornado num elemento residual - regressaram em força há três estações através da Comme des Garçons.

Na estação seguinte, vários criadores de renome internacional, sobretudo europeus, desenvolveram o tema, associando por exemplo calças militares a sapatos de saltos finos e super femininos que já se estavam a afirmar - artistas como Kylie Minogue ou Madonna serviram de veículo à ideia dessa mulher urbana e sofisticada mas também "engagé" e reivindicativa. Depois, foi a vez de a indústria entrar em cena, massificando as influências.

Na origem de tudo isto, diz Paulo Gomes, director artístico da Moda Lisboa e editor de moda, está uma atitude política "desaparecida da moda já desde finais dos anos 70, início dos 80". Aquilo a que se assistiu nas últimas estações, explica, é um tipo de posicionamento verdadeiramente radical e contestatário, que terá morrido com a dissolução do movimento "punk". O "punk" começou por ser apadrinhado por estilistas como a britânica Vivienne Westwood, desde o início ligada à voz disruptiva e anárquica dos míticos Sex Pistols, saídos dos subúrbios empobrecidos de Londres para apontar o dedo à monarquia britânica e gritar "Nem tudo está bem no reino de sua majestade!".

Mais longe ainda na cronologia do século XX industrializado, há exemplos históricos que parecem provar a ideia defendida por este especialista de que "as alturas de recessão, em que há no ar uma certa angústia e revolta, são as épocas mais criativas na moda": a masculinização das roupas femininas durante a II Guerra Mundial, pela mão da francesa Coco Chanel, atenta aos novos papéis sociais e laborais a desempenhar pela mulher e, no pós-guerra, a resposta da Dior ao cansaço da terrível recessão com o mais deslumbrante e inesperado dos faustos, em linhas completamente fluídas e tecidos nobres aparentemente descontextualizados numa Europa em ruínas.

Três décadas depois, e do outro lado do Atlântico, numa América endividada pela guerra do Vietname, Mary Quant responde à crise cortando nos tecidos e introduzindo a revolução da minissaia.

Oráculos

Ao contrário do que se passava no passado - em que ao criador cabia também a função aparentemente divinatória de responder às necessidades e vontades do consumidor quase a um ano de elas surgirem - hoje há especialistas que se dedicam exclusivamente a antecipar as tendências e apetências.

Li Edelkoort, a editora da empresa de consultoria Trend Union, que fornece estes serviços, é tida por muitos como "o oráculo da moda". Há já um ano, quando esteve em Portugal para uma série de palestras, a convite, precisamente, da associação Moda Lisboa, dizia: "A esquerda e a direita opõem-se cada vez mais, mas a direita está a subir. Vamos entrar num período difícil."

A previsão de um mundo mais hostil, conflituoso e agressivo, serviu a Li Edelkoort como base de reflexão sobre o que poderia tornar-se apelativo para os consumidores durante o Outono e Inverno de 2004: faixas para envolver o corpo, porque dão uma sensação de protecção; o branco, porque instala uma sensação de paz e calma, mas também os tons inspirados na areia e na sombra, e cores mais gastas, menos frescas e, por isso, menos chocantes. Por fim, a ideia de uma mulher preparada para lutar, uma amazona ou caçadora.

São coordenadas para serem seguidas, subvertidas ou completamente ignoradas pelos criadores. Mas Alexandra Moura, uma das mais jovens e promissoras criadoras envolvidas este ano na Moda Lisboa, parece estar em perfeita consonância com elas. O título que escolheu para a colecção é, aliás, elucidativo: "Sobreviventes". Reflecte sensações generalizadas de "insegurança" e "fome de protecção", bem como "necessidades físicas e espirituais" de acreditar "em algo ou alguém que olha por nós". A resposta a esses sentimentos: polainas, caneleiras, largas faixas de tecido ou fita entrançadeira tricotada que evolvem o corpo, cabeleiras e máscaras.

Do lado dos veteranos, Ana Salazar usa terminologia semelhante, falando também numa sensação de que "temos que nos proteger contra tudo" - a guerra, as doenças, a comida... - e, sem entrar em detalhes ("será surpresa..."), explica que é também através dos acessórios que se procurará oferecer uma "sensação de segurança".

As respostas são tão diversas como os criadores e o cunho autoral que têm vindo a desenvolver. Katty Xiomara, que tem apostado numa linha mais romântica e delicada, fala numa "nostalgia", num desejo de "desenvolver um optimismo baseado em boas recordações" face a um presente essencialmente adverso.

Numa repescagem de estilos que abrange várias épocas, Xiomara explica ter pensado a sua colecção "como quem abre um baú cheio de boas memórias", trazendo de volta cores "empoeiradas" como os rosas velhos, os beringelas deslavados, os brancos sujos e os pretos gastos.

Mas há extremos opostos. Osvaldo Martins responde com um grito de liberdade, alegria e dinamismo - calções muito curtos e minissaias, por exemplo, em que a cor é o ponto forte -, mas também uma "piéce de resistence": uma gabardina que se transforma em tenda e saco-cama. Numa opção radical, Lidija Kolovrat aposta numa colecção em vermelho integral : "O vermelho é sangue, mas o sangue também é um principio de vida, é sexy, emocional, erótico. É um 'statement' pela positiva."

Este ano, depois do susto provocado pelo congelamento das candidaturas de Lisboa e Vale do Tejo ao Programa Operacional de Economia, a Moda Lisboa tem um orçamento de 698 mil euros, dos quais 449 mil foram atribuídos pela Câmara Municipal de Lisboa (mais 274 mil euros do que no ano passado).