Um ano inteiro de tensões pode explodir no Natal

Segundo dia da série Conversas de fim de ano.

Fonte: INE e Pordata (Censos)
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Quem põe a mesa? Quem arruma a cozinha? Onde vamos passar o Natal, com a minha família ou com a tua? Como é que vamos abrir os presentes, um a um ou todos ao mesmo tempo?

No Natal, a época é supostamente de tranquilidade – mas um ano inteiro de tensões contidas por vezes explode em minutos. William Ury, mediador de conflitos americano que já esteve no Médio Oriente, nos Balcãs, na União Soviética, fundou com o antigo Presidente americano Jimmy Carter a International Negociation Network e tem também trabalhado com famílias, diz que quando pergunta "às pessoas qual é o conflito mais difícil para elas quase toda a gente diz que são os conflitos internos". "E não há conflito mais interno do que o que acontece na família." Porque, "por serem próximas, as pessoas estão muito mais susceptíveis à ideia de serem rejeitadas, há muito mais emoções à mistura e sentimentos de exclusão. O paradoxo do conflito é este: acontece mais facilmente com as pessoas mais próximas". O modelo: "Ser-se brando a lidar com as pessoas e firme e justo a lidar com o problema."

Se o Natal pode gerar conflitos familiares, também é particularmente duro para quem está sozinho, sobretudo para os mais velhos. Ou não: viver sozinho é uma das tendências mais importantes desde o baby boom, defende o sociólogo Eric Klinenberg, autor da pesquisa que deu livro Going Solo: The Extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone, publicado em Fevereiro. Nos Estados Unidos, um em cada sete americanos adultos vive sozinho, número ainda maior no Japão - 30% das casas - e na Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca, onde sobe para 40% a 45%. Em Portugal, há três vezes mais pessoas a viverem sozinhas hoje do que em 1960 e aumentaram 37,3% nos últimos dez anos - representam 21% dos agregados familiares. No livro concluiu que, ao contrário do que diz o senso comum, as pessoas que vivem sozinhas não estão nada sozinhas, até socializam mais que as outras.

Voltemos ao autor de The Power of a Positive No: How to Say No & Still Get to Yes e de Getting to Yes: Negotiating Agreement Without Giving In e co-fundador do programa de negociação da Universidade de Harvard, que nos fala do óbvio, mas difícil truque de "saber ouvir". Afinal, no calor do momento de um conflito, como o conseguir? "Os negociadores bem-sucedidos traçam uma linha no cérebro entre os aspectos emocionais, relacionais e psicológicos e o problema, sem os misturar. O que muitas vezes acontece é que o problema - onde vamos passar este Natal, com a minha família ou com a tua? - está carregado de emoções. Depois, o ideal é saber ouvir. Há imensa conversa nas discussões familiares e o que falta é ouvir - e ouvir mesmo, não apenas as palavras mas o que está por detrás delas. Ouvir é uma forma de nos colocarmos no lugar de outra pessoa, ver como ela se sente e pensa, e também é uma forma de respeito", diz.

Ury lembra um ditado: "Quando estiveres zangado, farás o melhor discurso de que mais te arrependerás." É algo que acontece muito no contexto familiar. Por isso, respirar fundo e conter a vontade de responder é essencial. "Uso a metáfora do ir para uma varanda. Todas estas actividades, reuniões familiares, estão a acontecer num palco, há um drama, e toda a gente é um actor numa peça; do que precisamos é da capacidade de nos afastarmos por um momento e ir para uma varanda mental, um sítio de calma e de perspectiva, para pensar naquilo que é realmente importante: a família!"

Depois também é importante perceber que se há conflitos destrutivos, nem todos são negativos - em si, o conflito é neutral, diz. "A alternativa não é anulá-lo ou reprimi-lo. Às vezes é tão forte que ninguém fala nele e depois explode. Isso é uma dinâmica muito frequente (evitar o conflito). E quando ninguém fala, todos sentem a pressão, contamina as reuniões familiares - a nossa escolha deve ser envolvermo-nos com o conflito mas de forma construtiva."

O conflito "vê-se no corpo"
Para o homem que já negociou temas complicados como a crise do nuclear nos anos 1980 entre os Estados Unidos e a União Soviética, que viu centenas de conflitos a desencadearem-se à sua frente, o conflito "é uma coisa muito forte, que vem do coração, dos intestinos" e que se vê no corpo. "Podemos ler a tensão nas caras das pessoas, percebemos quando estão zangadas activamente ou quando estão a conter a raiva, o ressentimento ou a tristeza - vemos sinais emocionais fortes de insatisfação, de frustração... Quando não lidam bem com o conflito, agarram-se a sentimentos que têm cá dentro e isso reflecte-se na saúde porque os nossos corpos são muito sensíveis. Começamos também a ouvir o conflito no tom de voz."

William Ury desenvolveu a teoria do dizer um "não positivo", uma dinâmica "sanduíche": um "não" positivo de alguém pode gerar um "sim" do outro lado. O argumento é que desde cedo somos induzidos a associar o "não" a uma palavra negativa, quando na verdade "é a palavra mais importante para proteger o que é mais importante para nós": auto-respeito. "Há um "não" que não é desrespeitador, não tem raiva, mas é calmo porque é um "não" que diz: "Vou fazer aquilo que é importante e tem um significado para a minha vida." E é seguido de um "sim" do outro lado que é um "sim" à relação."

Isto é muito diferente de um "não" sem explicação - Ury lembra a história de uma mulher com 50 anos que falava da resposta dos pais quando ela, adolescente, lhes pediu para ir numa viagem e lhe foi dito: "Porque eu digo que não." Se há sempre questões de poder nos conflitos, este caso exemplifica um "exercício de puro poder", "humilhante porque não há respeito".

Finalmente, a melhor maneira de entrar num conflito é centrar os argumentos em nós próprios em vez de desatar a listar acusações, aconselha. "Os argumentos no "eu" focam-se na minha experiência, os do "tu" nos atributos do outro. De cada vez que se usa a palavra "tu" isso torna o outro defensivo, reactivo, zangado, porque se sente acusado. Se nos centrarmos em nós próprios e na forma como a questão nos afecta é muito mais fácil o outro ouvir."

Independentes e mais ligados
Depois de fazer investigação sobre as mortes causada pela onda de calor em Chicago em 1995 e escrever Heat Wave: A Social Autopsy of Disaster in Chicago (2002), que ganhou inúmeros prémios, o sociólogo Eric Klinenberg foi estudar os que vivem sozinhos. Primeiro, achava que era uma tendência americana associada ao isolamento. Acabou a concluir que era uma tendência global e representa uma mudança de séculos a viver em unidades familiares para algo que se tornou comum - e afecta as cidades, "que precisam de ser redesenhadas para ir ao encontro das necessidades das pessoas que vivem sozinhas". "A arquitectura das cidades mudou: temos apartamentos mais pequenos e as pessoas querem ter espaços públicos maiores onde se possam encontrar, porque quem vive sozinho não quer ficar sozinho, quer socializar." Resultado, se forem bem desenhadas, as cidades promovem encontros e "recolhem benefícios económicos" porque "as pessoas que vivem sozinhas estão mais disponíveis para sair e gastar dinheiro, ir a espaços públicos, bares e restaurantes".

Klinenberg defende que esta tendência social está a mudar a forma como olhamos para as relações mais íntimas, porque quando se está num contexto em que a maior parte das pessoas vive sozinha, e se estiver infeliz numa relação amorosa, por exemplo, "é muito mais fácil acabar a relação e ir viver sozinho".

Mas quem é este grupo? Podemos sequer falar de um grupo? Condição número um: dinheiro. Quem vive sozinho tem de ter um nível económico mínimo - e estar inserido numa sociedade rica -, porque é caro. Não há pessoas a viver sozinhas em países e bairros pobres, lembra. Normalmente, são pessoas que vivem em cidades, onde se pode estar sozinho mas acompanhado ao mesmo tempo. É ainda menos comum viver-se sozinho em sociedades onde não há liberdade e independência das mulheres.

A entrada das mulheres no mercado é, aliás, um dos factores que o sociólogo identifica como tendo impulsionado o aumento do número de pessoas que vivem sozinhas. Porque mudou a forma como as famílias funcionam: as mulheres tornaram-se independentes dos homens, a idade do primeiro casamento e as taxas de divórcio subiram, e "as pessoas ficam com muito mais liberdade para procurar o tipo de relação que querem".

Os números dispararam também por causa de outros três factores: as revoluções na comunicação, na urbanização e na longevidade. "O aparecimento da televisão, dos telemóveis, do Facebook, do Skype, etc., significa que as pessoas podem viver sozinhas mas continuarem ligadas ao mundo de forma muito intensa, ou seja, viver sozinho não é uma experiência de isolamento. Urbanização: se vive sozinho num bairro urbano provavelmente está-se rodeado de pessoas na mesma situação. Nas grandes cidades americanas e europeias, 40% a 60% das casas têm apenas uma pessoa e em alguns bairros essa percentagem ainda é mais alta - porque as pessoas tendem a agregar-se em clusters. O último factor é a revolução da longevidade, porque as mulheres estão a viver mais tempo do que os seus parceiros e durante muitos anos, como se fosse uma nova etapa da vida."

Em Portugal, e nos países em que a crise está a ter consequências dramáticas, a percentagem das casas com uma única pessoa pode ter baixado, analisa. Mas a tendência em cenários de crise económica é de aumento, porque as crises "são péssimas para os casamentos, que descem porque as pessoas não querem assumir a responsabilidade pela outra pessoa, ou acabam em divórcio". Por outro lado, os que vivem sozinhos ainda precisam de ser descobertos como mercado-alvo. "Quem vive sozinho faz muito mais parte do mercado e consome muito mais do que a maioria das empresas pensa. Estão a gastar e a alimentar as economias das cidades há muitos anos e as empresas que se dirigem a este grupo estão a fazer imenso dinheiro, com produtos que vão de embalagens pequenas de comida a pacotes de viagens, de casas mais pequenas a todos os serviços personalizados."

Apesar de o seu discurso ter um tom celebratório, Klinenberg diz que se limita a retratar uma realidade e não a fazer a apologia para se viver sozinho. Não concorda com quem associa a tendência de aumento ao declínio das comunidades. "O que descobri é que viver sozinho tende a acontecer em sítios onde há uma maior vida colectiva, um estado social mais generoso e é a nossa interdependência que torna possível a nossa independência - é um sinal da nossa conectividade, não do nosso declínio social."

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