Quatro enfermeiros, o mesmo desalento em dia de greve

O PÚBLICO desafiou quatro enfermeiros com idades, locais de trabalho e percursos profissionais distintos a contarem na primeira pessoa como é desempenhar esta profissão hoje e como se revêem no apelo à greve feito pelo SEP.

Foto
Até dia 19, hospitais de Coimbra, Algarve e Alentejo vão ter paralizações Paulo Pimenta

Depois da greve de 14 de Novembro, os enfermeiros cumprem nesta sexta-feira o segundo e último dia da paralisação nacional convocada pelo Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), numa luta contra a degradação das condições profissionais, a carência de profissionais de enfermagem, os cortes nas horas extraordinárias, o congelamento das carreiras e, entre outros temas, o aumento do horário de trabalho para 40 horas semanais. É a segunda greve nacional desde Setembro.

André Correia trabalha nos cuidados intensivos no Hospital de Faro. Carlos Pinto coordena uma Equipa de Cuidados Continuados Integrados num centro de saúde no Porto. Olga Vieira já passou pelo meio hospitalar, mas agora está num centro de saúde no distrito de Castelo Branco e Cláudia Correia trabalha no Hospital de Dia de Oncologia do Hospital Amadora-Sintra, onde também já passou pelas urgências. Os quatro enfermeiros partilham a paixão pela profissão, ao mesmo tempo que relatam o confronto com o desalento – vindo tanto da degradação das condições de trabalho, como da falta de perspectivas de carreira.

Todos denunciam que a pressão no terreno não permite prestar os melhores cuidados e, por isso, nesta sexta-feira fazem de novo greve. Só Olga Vieira, que no passado dia 14 aderiu à paralisação, desta vez vai mesmo trabalhar. Por motivos financeiros. De acordo com o balanço do SEP, o protesto da semana passada registou uma adesão na ordem dos 78% e as previsões é para que estes números de mantenham.

Até porque acusam o Ministério de Saúde de estar a agir de “má-fé”, por só reunir com a estrutura quando o Orçamento do Estado para 2015 estiver aprovado. Do lado da tutela as críticas surgiram, sobretudo, à postura do SEP no dia 14, já que esse dia de greve foi mantido apesar do apelo para que a desconvocassem devido ao surto “extraordinário” de Legionella que obrigou a ter mais doentes internados do que o habitual.
 

“A greve tem vindo a perder poder de influência” 

André Correia, 27 anos, enfermeiro na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Centro Hospitalar do Algarve - Hospital de Faro

“Embora trabalhe há apenas alguns anos, agora na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Centro Hospitalar do Algarve - Faro, conto já com alguns momentos colectivos de reivindicação em busca de melhores condições de trabalho - greves - sem no entanto vislumbrar qualquer melhoria. Bem pelo contrário. É sentido um decréscimo, descrédito e diminuição do papel do enfermeiro e reconhecimento do seu contributo social.

Contudo e, talvez por este motivo, sentindo também que a greve é uma forma de manifestação que tem vindo a perder poder de influência nas decisões políticas, ponderei bastante a adesão à greve de dia 14 e 21 de Novembro. Não pude, porém, deixar de aderir ao sentir a forma como mais uma vez fomos tratados pela tutela. Nós que a cada greve nos mantemos nos locais de trabalho. Nós que apesar de pautarmos pelos cuidados mínimos, não raras as vezes prestamos cuidados máximos. Nós que em muitos serviços, pela gravidade das situações clínicas dos doentes, mantemos os mesmos níveis de cuidados mesmo em dia de paralisação, apenas para que os números da greve se façam sentir, perdendo dias de salário.

Nós que, mesmo sem reconhecimento salarial ou possibilidade negocial, continuamos a investir formativamente na carreira profissional, em prejuízo da vida familiar e social. Nós que passamos Natais, feriados e “festas afins” longe dos que nos são próximos para estar juntos dos que vos são próximos.

É um pouco de tudo isto que nós Enfermeiros sentimos quando somos assim tratados, não só pela tutela, mas também por aqueles que se dizem críticos informados, que informam e criticam, mas que desinforma amente formam a sociedade.”

“Ser enfermeiro é transportar um sentimento de ingratidão” 

Carlos Pinto, 32 anos, enfermeiro responsável pela Equipa de Cuidados Continuados Integrados da Batalha na Unidade de Cuidados na Comunidade Baixa do Porto

“Passaram cerca de 12 anos desde que decidi o que queria ser - Enfermeiro. Depois de quatro anos de trabalho árduo, com muito estudo e prática, formei-me. Trabalho há mais de oito anos, com uma especialização em Enfermagem na Comunidade há seis. Trabalho em prol do outro, dos outros, numa entrega de mim mesmo, roubando tantas vezes tempo ao meu tempo e aos que me são mais queridos. Um outro que tantas vezes não me (re)conhece. Um outro que tantas vezes maltrata e não valoriza. Um outro que tantas vezes só se lembra do enfermeiro quando dele necessita, quando dele está dependente, para depois esquecer-se novamente. Até uma próxima vez que necessitar do Enfermeiro.

Mas ser Enfermeiro é também estar ao serviço, mais do que em serviço. É estar presente, ser mão, ser abraço, ser sorriso. ser Enfermeiro é também escutar, aconselhar, orientar, empoderar, capacitar. É ser guia orientador num projecto de vida que se quer salutar.

Ser Enfermeiro não é meramente tratar a doença. É muito mais: É cuidar. É promover a saúde! É ser investigador para o bem da sociedade. É estar constantemente a estudar para se manter actualizado; é tornar-se especialista, mestre, doutor. E sem qualquer reconhecimento político em Portugal. Sem valorização económica. E tantas vezes sem o reconhecimento social devido e merecido.

Ser Enfermeiro nos dias que hoje correm em Portugal é, acima de tudo, transportar um sentimento de ingratidão e falta de reconhecimento.

Não fosse a paixão que me move (sim, ser Enfermeiro é apaixonante!) de gostar de ser Enfermeiro e de cuidar e há muito que teria emigrado ou procurado ser uma qualquer outra profissão, carregando contudo a certeza de que não seria um ser humano tão feliz e uma pessoa profissionalmente realizada.

Ser Enfermeiro em Portugal é ser lutador. E, por isso, hoje e sempre, luto e lutarei pela dignidade desta profissão que um dia abracei, afirmando assim a segurança e a qualidade dos cuidados que os cidadãos portugueses merecem.”

“Para as instituições e tutela somos apenas números” 

Olga Vieira, 43 anos, enfermeira no Centro de Saúde de Vila Velha de Rodão - Unidade Local de Saúde de Castelo Branco

“Escolhi ser enfermeira, sou-o de coração. Gosto do que faço. No momento presente sinto-me totalmente desmotivada, não existe respeito pela minha classe profissional. Não somos respeitados pela tutela. Não somos respeitados pela opinião pública que, de certa forma, tem desculpa pois não conhecem o nosso trabalho, não sabem o que fazemos, nem as competências que temos.

Ao longo destes 21 anos a enfermagem passou por uma grande evolução, nomeadamente em termos académicos. Somos talvez das profissões com maior evolução na área do conhecimento e desenvolvimento de competências. Lamentavelmente, a par desta evolução, não tem havido o reconhecimento profissional das competências adquiridas e desenvolvidas a bem dos nossos Doentes

Utentes. O reconhecimento a que me refiro tem essencialmente que ver com o poder político. Somos Licenciados e não o somos reconhecidos a nível remuneratório.

Sinto que no presente, para as instituições e tutela, somos apenas e somente números. É-nos exigido atingir determinados indicadores, maioritariamente do foro médico, que não expressam, do meu ponto de vista, a qualidade dos cuidados prestados. O que não nos dignifica.

Neste momento não importa se o Sr. “António” está com a tensão arterial descontrolada porque a reforma não chega para os medicamentos, importa sim que tenha dois registos de tensão arterial no ano. Não importa que se faça o ensino adequado a um utente com diabetes inaugural, importa sim que esteja registado. acontece que para fazer um ensino adequado a um utente com diabetes é necessário tempo. Tempo esse que não temos. Sinto que cada vez temos menos disponibilidade para estar com o utente, permitir ao utente ter tempo para colocar as suas questões, assegurarmo-nos que percebeu o que lhe foi explicado. A falta de recursos humanos limita-nos.

O acréscimo de horário para as 40 horas semanais mais não foi que uma forma de nos diminuírem o vencimento, levando a injustiças tais que colegas com menos dez anos de carreira têm um vencimento hora igual ao meu (colegas que por via dos seu contratos individuais  trabalham 35h semanais). Não são eles que estão mal. Nós é que não estamos bem. São estas injustiças que nos vão nos corroendo.

Fico triste quando percebo que ao fim de 21 anos de exercício profissional um recém-formado (ordenado base 1201 euros) aufere quase tanto quanto eu (ordenado base de 1386 euros bruto). A Carreira de Enfermagem está morta. Não existe qualquer progressão. Sinto-me maltratada e triste e penso muitas vezes que se fosse um pouco mais nova, se não tivesse filhos partia deste país para um qualquer que reconhece-se a excelência do “meu” trabalho. Tenho vontade de desistir e ir fazer outra coisa qualquer”

“Precisamos de mais colegas ao nosso lado e não lá fora” 

Cláudia Correia, 36 anos, enfermeira no Hospital de Dia de Oncologia no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra)

“Ser enfermeira não foi a minha primeira escolha em termos de profissão. Estive numa outra área completamente diferente. Queria ajudar, queria estar perto daqueles que precisavam. Durante quatro anos aprendi a ouvir e a ver o doente como um todo, não apenas a doença que o levara ao hospital.

Comecei a trabalhar. Inicialmente era um mundo novo e lindo, mas depressa começaram a aparecer pequenos buracos nesta ideia. Horas a mais que trabalhava, tempo a menos que estava com a família, ausência de tempo para estar com os doentes, que por vezes apenas precisam de alguém que os oiça. Tudo aquilo que tinha criado na minha mente, começou a cair. Para muita gente ser enfermeiro é ser o “criado” do médico, ou apenas aquela pessoa que dá as injecções. Ser enfermeiro é mais que isso. É aquela pessoa que está presente quando é preciso, mesmo que os outros não estejam.

Estou na área da oncologia, depois de quatro anos nas urgências. Vejo os doentes todos os dias a chegarem com sonhos, esperanças e incertezas que nos confidenciam. Vejo as lutas que fazem, algumas conseguem ser vencidas outras não. Vejo as suas famílias, que buscam em nós apoio, uma palavra amiga. Eles contam connosco. E nós temos tempo para eles, sempre com um sorriso nos lábios. No fim do dia chegamos a casa cansados, muitas vezes sem paciência para a família e amigos. Somos poucos para tantos. Temos pouco tempo mas tentamos dar tanto.

Vejo os meus colegas dos outros serviços a queixarem-se do mesmo. Tanto trabalho e tão poucas condições para o realizar, condições humanas, de material, de espaço... Da minha ideia inicial utópica da enfermagem a começar a querer mais condições para todos nós, foi um passo pequeno. Comecei a fazer greve.Inicialmente porque os colegas faziam, mas depois com mais consciência da situação em que nos encontrávamos.

Hoje faço greve pela convicção de que precisamos de mais condições. Precisamos de mais colegas ao nosso lado e não lá fora noutros países, precisamos de não estar exaustos e ter tempo para a família, precisamos que nos valorizem como elementos essenciais para o bem-estar e promoção da saúde, precisamos que nos valorizem como licenciados e não como bacharéis. Pode ser que aos pouco consigamos o que pretendemos.”  

Sugerir correcção
Ler 3 comentários