Oncologistas portugueses contestam despacho sobre acesso a medicamentos inovadores

O despacho “vai contribuir para degradar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes oncológicos”, dizem especialistas.

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Apenas os três centros regionais do IPO podem pedir estas autorizações especiais Nelson Garrido

Um grupo de 65 oncologistas, cerca de metade dos que existem no país, está perplexo e em “total desacordo” com o despacho do Ministério da Saúde (MS) que estipula que, na área da oncologia, apenas três centros do país possam pedir autorizações especiais para usar medicamentos, que ainda carecem de aprovação para entrar no mercado nacional.

Os especialistas subscreveram um documento a contestar o despacho que consideram “grave”, sem fundamento, e que coloca em causa os direitos dos doentes.

No documento intitulado Em defesa dos doentes oncológicos, que entregaram à Ordem dos Médicos, alegam que o despacho “vai contribuir para degradar a qualidade dos cuidados prestados aos doentes oncológicos”, não tem fundamentação técnica e viola os princípios básicos da autonomia do exercício técnico e da confiança na relação entre médico e doente.

Entre outras razões, argumentam que o procedimento para a obtenção de uma autorização especial já era “bastante controlado e exigente”, pelo que é “incompreensível a criação de um novo patamar de decisão clínica”. Até aqui, as instituições de saúde enviavam os pedidos para o Infarmed; agora têm de passar primeiro pelo Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, de Coimbra ou do Porto – o despacho definiu, para a área da oncologia, estas três instituições como Centros Especializados para Utilização Excepcional de Medicamentos (CEUEM).

“A nossa posição não implica clivagem entre médicos, isso é o que o despacho faz. De uma forma geral, os oncologistas são muito bons em Portugal. A capacidade de os médicos só poderem decidir acerca de uma terapêutica no sítio A ou B é absurda. Isso não se determina por despacho. Este despacho introduz um conceito abusivo e inapropriado”, diz um dos signatários, Jorge Espírito Santo.

“Conferir a um segundo médico o papel de avaliar a decisão do primeiro, que está a seguir o doente, sem que o tivesse pedido, pode eventualmente levantar dúvidas ao doente, que acaba por sentir que o médico não tem autonomia”, acrescenta.

Os especialistas argumentam que, nos casos em que haja discordância entre a decisão do médico assistente e do CEUEM, “será posto em causa o plano terapêutico dos doentes e a sua relação de confiança com a instituição que o trata”.

Os especialistas não entendem “a criação de uma nova entidade, designada CEUEM, à revelia da Ordem dos Médicos sem que tenham sido previamente definidos os respectivos critérios, condições de funcionamento, recursos e atribuições” e sublinham que estão “em causa valores fundamentais da profissão médica e sobretudo os direitos dos doentes oncológicos”.

Oncologia tem despesa controlada, dizem médicos

Também consideram que “o despacho não tem fundamentação técnica e carece de oportunidade”: “Se existe uma área em Portugal onde a despesa com medicamentos está controlada é a oncologia, onde se tem observado uma continuada redução quer no valor gasto quer na percentagem do total da despesa com medicamentos nos últimos três anos, de acordo com os relatórios de monitorização do mercado publicados pelo Infarmed”, lê-se.

Os signatários não se ficam pelas críticas e avançam com um conjunto de propostas, entre as quais a adopção de medidas pelo MS que tornem “mais célere” o processo de avaliação e aprovação de novos fármacos, de acordo com a lei, tornando “residual” a necessidade de pedidos de autorização especial. Neste sentido, propõem que exista um conjunto de critérios uniformes de decisão para serem seguidos por todas as instituições, nos casos em que é necessário recorrer a uma autorização especial. Estes critérios, defendem, devem ser definidos por uma Comissão Nacional de peritos representativos de várias instituições, com a participação da Ordem dos Médicos, e devem também ser monitorizados.

O documento é assinado por 65 oncologistas, num universo de cerca de 140 em exercício activo no país: “65 assinaram em apenas uma semana”, diz Jorge Espírito Santo, convencido de que mais nomes se juntarão ao protesto.

A polémica já tinha estalado antes, com as críticas que a própria Ordem dos Médicos fez ao despacho, quando foi publicado a 30 de Outubro, pedindo mesmo a “suspensão imediata” do documento. Na altura, o MS admitiu que o despacho podia não ser claro em alguns aspectos, mas reiterou que a ideia não é “complicar”, mas sim harmonizar critérios. O ministro da Saúde, Paulo Macedo, garantiu ainda que são os processos e não os doentes a serem encaminhados para os CEUEM.

O PÚBLICO já pediu uma reacção ao MS às críticas destes 65 oncologistas, mas continua a aguardar uma resposta.

Notícia actualizada às 18h35 - acrescenta declarações de um dos signatários.
 
 

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