Nuno Crato: o facilitismo e a cruzada ideológica

Há liceus históricos de Lisboa literalmente a cair e a escola pública conhece sucessivos apertos orçamentais, mas para o privado há sempre mais e mais dinheiro.

Como outros da sua geração, o ministro da Educação e da Ciência (MEC), Nuno Crato (NC), passou pelo maoísmo e depois converteu-se às virtudes do neoliberalismo. Coerentemente, o seu consulado tem sido marcado pelo favorecimento do ensino privado, subalternizando até as funções constitucionais para que foi investido: “O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (art.º 75, CRP). Mais: na oposição, nas suas atividades de divulgador “científico”, Crato apresentava-se, e era apresentado, como uma espécie de campeão da exigência e do rigor no ensino. Porém, o facilitismo, a par do favorecimento de interesses privados, revelou-se em todo o seu esplendor em várias ações recentes da sua política científica, nomeadamente com o que se passou com a nomeação do Conselho Científico das Ciências Sociais e das Humanidades (CCCSH) mas também com a constituição de pelo menos um dos júris para a atribuição de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento. Semelhante padrão é discernível no ensino secundário.

Antes de falar do se passou com o CCCSH, vale a pena fazer duas notas de contextualização recuperando aquilo que Diogo Ramada Curto (DRC) classificou como o “inverno da investigação” em humanidades e ciências sociais (PÚBLICO, 3/1/14), e que de algum modo teria antecedido (casualmente?) o descalabro que se está a verificar com o consulado de NC. Por um lado, trata-se de uma certa burocratização das funções de ensino e de investigação que não só sobrecarrega os docentes e investigadores (relatórios de todo o tipo, extensos formulários para avaliação dos docentes e dos investigadores, preenchimento dos mesmos curricula vitae em vários formatos, extensos formulários para a avaliação dos cursos e dos centros de investigação, etc.) como promove uma certa casta de administradores das instituições especializados nestas funções e que paulatinamente se desligam do ensino e da investigação. Pessoalmente, creio que há vários elementos positivos nestas avaliações (veja-se o trabalho de avaliação dos centros de investigação por peritos nacionais e internacionais ou dos cursos superiores pela A3ES), sendo que, do meu ponto de vista, o problema é mais o de um excesso de burocratização (multiplicam-se os extensos formulários, as duplicações dos mesmos, etc.), de falta de consequências das avaliações (ausência de concursos para progressão na carreira, avaliação de desempenho sem consequências remuneratórias) e de oportunidades para os mais jovens (e talentosos). O segundo fator estrutural apontado por DRC para o “inverno da investigação” é a ênfase na bibliometria. Concordo parcialmente. Ou seja, por um lado, há de facto um certo fetichismo bibliométrico: seja pela desvalorização dos livros, seja pela não inclusão de muitas revistas de qualidade nas bases internacionais, seja pela desvalorização de publicações em línguas que não a inglesa, seja pelo afunilamento (pelos “novos cães de guarda”) dos temas de investigação e publicação. A desvalorização das publicações em português, em geral, e dos livros, em particular, é tanto mais grave quanto o português é uma língua de projeção internacional que devia ser defendida e promovida como tal (vide Mário Vieira de Carvalho, PÚBLICO, 29/12/13), e a publicação dos resultados das ciências sociais em livro, nomeadamente na língua materna, é um elemento central de devolução do investimento que a sociedade faz nestas áreas. Mas, por outro lado, a publicação em revistas internacionais com arbitragem científica anónima é uma das formas adequadas de internacionalização da investigação, introduz uma chancela de qualidade (que, não sendo a única, é uma chancela de grande valor), assegura vastas audiências especializadas e, em regra, assegura uma certa imparcialidade na avaliação (double blind referee: avaliadores e avaliados desconhecem-se mutuamente), permitindo precisamente evitar situações de favorecimento como algumas das que observamos no CCCSH.

A direita tem em regra uma atitude de desconfiança e de desvalorização das ciências sociais e das humanidades (CSH). Por um lado, desconfia dos seus olhares críticos face aos mecanismos que geram e reproduzem as desigualdades e a dominação. Por outro, tem uma visão tecnocrática da sociedade e das ciências que a leva a desvalorizar as CSH em prol das ciências naturais e/ou das tecnologias. Tal dupla desconfiança e desvalorização poderá ajudar a explicar porque é que o número de contratos de investigador FCT 2013 para as CSH passou de 20% para 10% do total, face ao anterior concurso. Poderá ainda ajudar a explicar a tentativa (parcialmente falhada, devido ao protesto unânime das associações científicas das CSH) da FCT e de NC de enxertar profissionais exteriores às CSH no CCCSH. Mas a desconfiança ideológica face às CSH nas universidades públicas terá atingido o paroxismo com este Governo. Por exemplo, temos membros do CCCSH que ou pertencem a centros de investigação que foram sistematicamente mal classificados pelos peritos contratados pela FCT (caso do IEP da Católica: Fair / Razoável) ou que pertencem a instituições privadas que nem centro de investigação avaliado pela FCT têm (caso da instituição da mulher do ministro: Instituto Superior de Educação e Ciências, ISEC). Aliás, a este respeito, refira-se que, enquanto algumas instituições sistematicamente classificadas como “excelente” pela FCT estão estranhamente ausentes (há vários centros do ISCTE-IUL assim classificados ao longo dos anos, por exemplo), há privadas com “razoável” (caso do IEP da Católica) ou sem avaliação (ISEC) (o centro de economia e gestão da Católica, UNICEE, também presente no CCCSH, teve, diga-se em abono da verdade, uma classificação de “excelente”). Mas a falta de critérios meritocráticos na seleção de alguns dos membros do painel, envolto em suspeitas de nepotismo, amiguismo político e tentativas desvalorização do órgão (para fazer dele “gato sapato”, DRC dixit), está ainda patente nos curricula vitae de alguns investigadores (ora porque têm um número risível de publicações em revistas internacionais, ora porque nunca dirigiram projetos de pesquisa financiados pela FCT ou até porque nunca participaram em tais projetos, ou ambas as coisas). Aliás, o favorecimento das universidades privadas (no caso, a Universidade Portucalense) e de professores de tal extração com curricula vitae abaixo dos mínimos absolutos para tais funções está também patente na composição do júri de atribuição de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento em “Ciência Política e Direito” (uma junção que representa um retrocesso e que é rejeitada pelas duas áreas, sendo apenas compreensível como instrumento de marketing político: para escamotear o refluxo brutal de bolsas), em 2013. Resumindo, a confusão que grassa na FCT, sobretudo em matéria de CSH e não só (vide a contestação do concurso investigador FCT 2013), deve-se a orientações políticas da tutela de valorização das instituições privadas, passando por cima de vários critérios meritocráticos básicos (ao nível individual e/ou institucional), que revelam que a tutela não está nada preocupada com a excelência, está antes obcecada em cumprir uma determinada agenda ideológica, a qualquer custo. De caminho, há ainda uma visão tecnocrática de menorização das CS&H e de desvalorização e instrumentalização dos órgãos de topo da FCT. Semelhante padrão de favorecimento e de dualidade de critérios encontra-se também no ensino secundário: no público, é precisa uma prova para selecionar os melhores para a profissão docente, no privado, não; as escolas públicas são afogadas em regulamentação paralisante, as privadas vivem numa cada vez maior desregulação; há liceus históricos de Lisboa literalmente a cair e a escola pública conhece sucessivos apertos orçamentais, mas para o privado há sempre mais e mais dinheiro.

Politólogo, professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)

 
 
 

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