Mulier tacet in eclesia ou a discriminação sexual

Joseph Ratzinger, cardeal alemão, é o Papa há uns anos. Resignou há dias mais pelas atribulações internas da Igreja Católica que governa do que tão só pela sua debilidade física própria de um homem de 85 anos. Penso eu.

O Papa enfrentou, e pela primeira vez, e de forma universal, essa vergonha que se chama pedofilia. Vergonha e crime em todo o mundo.

Mas não menos relevante, Ratzinger teve a força e energia morais para tomar uma medida que não menos cobria, se ainda não cobre, a sua Igreja com um manto de negócios cinzentos ou até de cores muito mais carregadas: O Banco do Vaticano, eufemisticamente chamado Instituto Para as Obras da Religião (IOR). E não terá sido porque Ratzinger despertou um dia indisposto que, 15 dias antes de anunciar a sua resignação, o Papa nomeou um novo gestor dos dinheiros de Deus na terra: um também alemão.

Deixe-se, porém, os dinheiros de Deus e a pedofilia, acentuando, com felicitações e agrado, a pregação do Papa, não há muito tempo atrás, sobre a igualdade entre os povos, a solidariedade universal, a paz, a justa distribuição da riqueza na Terra.

Todavia, Ratzinger – um cardeal que nos avezámos a ver sofredor, com um sorriso sempre triste de homem de Deus que carregava nos ombros os pecados das suas ovelhas tresmalhadas –, não foi capaz ou não o deixaram, como filósofo, teólogo e homem de cultura que é, de abolir um princípio de milénios vigente na sua Igreja: a mulher estar calada. O que quer dizer que a discriminação sexual é um princípio estrutural da Igreja Católica, igreja onde os cargos da hierarquia são exclusivamente destinados à virilidade masculina, assente no postulado segundo o qual a mulher é, na escala de valores da Igreja, um ser de graduação abaixo.

Ora, liderando o Papa de Roma milhões de gentes por esse mundo fora, não se estranhe que os poderes da Terra perfilhem tal princípio. Apesar da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a europeia dos mesmos direitos, as declarações das Nações Unidas e já agora a Constituição da República Portuguesa, invocada quando dá jeito e excomungada quando o não dá.

Antero de Quental, que era também “antero”, o disse nas Conferências do Casino, por meados do século XIX: o atraso de Portugal também se deve a alguns “dogmas“ da Igreja Católica e nesses também a perfilhação de um tal princípio. E a desigualdade entre sexos, cá por casa, já ninguém tem a ousadia de, publicamente, a defender mas muitos, obscuramente, a praticam.

Salvo, vejam lá, o Estado, se excluirmos a coutada dos partidos que capturaram, como é por demais evidente, os lugares genuinamente de natureza política e muitos que o não são.

Conquistas de Abril, agora recordado, por forças “instrumentalizadas”, é óbvio que, aqui e ali, enfrentam e afrontam o poder ao som de José Afonso: Grândola Vila Morena.

Apenas um exemplo: após Abril, as mulheres entraram nas magistraturas e no Ministério Público constituem já uma percentagem superior à dos seus colegas da “virilidade”.

E nas empresas privadas? Aqui vigora, com algumas excepções, o princípio genuinamente católico: mulier tacet in eclesia. Até quando?

É que, por mais bem desenhadas e inspiradas em princípios justos e universais, as leis e declarações não passam de papel, se e enquanto, o Homem não lhes der forma, passe a expressão, material.

O autor é Procurador-Geral Adjunto

Sugerir correcção
Comentar