Mulier tacet in eclesia ou a discriminação sexual

O Papa enfrentou, e pela primeira vez, e de forma universal, essa vergonha que se chama pedofilia. Vergonha e crime em todo o mundo.

Mas não menos relevante, Ratzinger teve a força e energia morais para tomar uma medida que não menos cobria, se ainda não cobre, a sua Igreja com um manto de negócios cinzentos ou até de cores muito mais carregadas: O Banco do Vaticano, eufemisticamente chamado Instituto Para as Obras da Religião (IOR). E não terá sido porque Ratzinger despertou um dia indisposto que, 15 dias antes de anunciar a sua resignação, o Papa nomeou um novo gestor dos dinheiros de Deus na terra: um também alemão.

Deixe-se, porém, os dinheiros de Deus e a pedofilia, acentuando, com felicitações e agrado, a pregação do Papa, não há muito tempo atrás, sobre a igualdade entre os povos, a solidariedade universal, a paz, a justa distribuição da riqueza na Terra.

Todavia, Ratzinger – um cardeal que nos avezámos a ver sofredor, com um sorriso sempre triste de homem de Deus que carregava nos ombros os pecados das suas ovelhas tresmalhadas –, não foi capaz ou não o deixaram, como filósofo, teólogo e homem de cultura que é, de abolir um princípio de milénios vigente na sua Igreja: a mulher estar calada. O que quer dizer que a discriminação sexual é um princípio estrutural da Igreja Católica, igreja onde os cargos da hierarquia são exclusivamente destinados à virilidade masculina, assente no postulado segundo o qual a mulher é, na escala de valores da Igreja, um ser de graduação abaixo.

Ora, liderando o Papa de Roma milhões de gentes por esse mundo fora, não se estranhe que os poderes da Terra perfilhem tal princípio. Apesar da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a europeia dos mesmos direitos, as declarações das Nações Unidas e já agora a Constituição da República Portuguesa, invocada quando dá jeito e excomungada quando o não dá.

Antero de Quental, que era também “antero”, o disse nas Conferências do Casino, por meados do século XIX: o atraso de Portugal também se deve a alguns “dogmas“ da Igreja Católica e nesses também a perfilhação de um tal princípio. E a desigualdade entre sexos, cá por casa, já ninguém tem a ousadia de, publicamente, a defender mas muitos, obscuramente, a praticam.

Salvo, vejam lá, o Estado, se excluirmos a coutada dos partidos que capturaram, como é por demais evidente, os lugares genuinamente de natureza política e muitos que o não são.

Conquistas de Abril, agora recordado, por forças “instrumentalizadas”, é óbvio que, aqui e ali, enfrentam e afrontam o poder ao som de José Afonso: Grândola Vila Morena.

Apenas um exemplo: após Abril, as mulheres entraram nas magistraturas e no Ministério Público constituem já uma percentagem superior à dos seus colegas da “virilidade”.

E nas empresas privadas? Aqui vigora, com algumas excepções, o princípio genuinamente católico: mulier tacet in eclesia. Até quando?

É que, por mais bem desenhadas e inspiradas em princípios justos e universais, as leis e declarações não passam de papel, se e enquanto, o Homem não lhes der forma, passe a expressão, material.

O autor é Procurador-Geral Adjunto

Sugerir correcção
Comentar