Inteligência Artificial ao serviço da Justiça?

Nenhum computador – por mais avançado que seja – é capaz de tomar uma decisão informada que tome em consideração todos os relevantes aspectos aplicáveis.

Ao contrário de outros domínios, o mundo da Justiça está ainda bastante afastado do mundo da informática: os juristas mais tradicionais rir-se-ão se lhes falarmos em “computadores-julgadores” mas será caso para rir?

“Justiça” e inúmeros outros conceitos que utilizamos diariamente nos nossos tribunais são “conceitos indeterminados”: têm de ser preenchidos por um intérprete, atendendo ao caso concreto. Ora, esse intérprete não pode – pelo menos por agora – ser um computador. Falta ainda desenvolvimento tecnológico: um computador não pensa como um humano. A lógica jurídica, dedutiva, até pode ser apreendida por um computador mas a capacidade de subsumir uma determinada realidade factual ao direito é bastante mais difícil para um computador. O que é ou não é justo para cada um de nós depende da aprendizagem, das experiências que cada um teve e, que se saiba, ainda não foi possível replicar uma tal concepção humana numa máquina.

Um outro aspecto pelo qual se entende que os computadores ainda não dominam o sector da Justiça está ligado à função simbólica dos tribunais. O mundo da Justiça não está apenas ligado à solução jurídica do caso concreto. Há toda uma ritualização e sacralidade de procedimentos que tornam a Justiça naquilo que ela é hoje. Os nossos tribunais não são apenas edifícios, salas e mobiliário: são monumentos da nossa tradição. Por um lado, a Justiça impõe-se de forma sacralizada, o que dita uma certa prevenção geral social; os cidadãos sabem que a Justiça e os tribunais servem para cumprir a lei e julgar os prevaricadores. Numa disputa judicial, por vezes é mais importante para o cidadão poder expor o seu problema perante um Juiz do que a solução, em concreto, dada ao caso. Por outro lado, com uma sacralização exagerada, o direito não consegue acompanhar o mundo real e não é capaz de regular a evolução social: não queremos atores de Justiça que vivam numa campânula fora da realidade, temerários da perda de protagonismo em favor das tecnologias, das formas alternativas de resolução de litígios, etc.. Veja-se o caso do jogo em linha que, apesar de absolutamente massificado na sociedade portuguesa, esteve até 2015 sem a regulação específica que chegou por via do Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/2015, de 29 de Abril.  

O conceito de Inteligência Artificial, abordado cientificamente, nada diz à maioria dos nossos aplicadores do direito: por um lado é uma ciência, por outro uma engenharia. Procura construir instrumentos de apoio da inteligência humana. Procura replicar em máquinas a inteligência humana, definindo esta como a capacidade de raciocínio (aplicar regras lógicas aos dados disponíveis para chegar a uma conclusão); a aprendizagem (aprender com os erros de forma a, no futuro, agir de maneira mais eficaz), o reconhecimento de padrões (tanto padrões visuais e sensoriais, como também padrões de comportamento) e inferência (capacidade de conseguir aplicar o raciocínio nas situações do nosso quotidiano). Resumindo, são sistemas que pensam e agem racionalmente como um humano.

A capacidade de um computador pensar ou ser inteligente foi estudada pelo famoso cientista Alan Turing. Este autor considerava que a única forma de obter uma resposta à questão: “Pode um computador pensar?” era através da formulação de uma exacta mesma questão a um computador e a um humano, separadamente. Nenhum deles – humano e computador – pode estar visível ao seu comparte nem ao questionador. Após as respostas dadas por cada um deles, se for impossível ao questionador distinguir, pelas respostas, o computador do humano então estaremos diante de Inteligência Artificial.

Ora, de que forma poderá ser instrumentalizada a Inteligência Artificial ao serviço da Justiça? Não falamos em “computadores julgadores” mas em sistemas de apoio à decisão. Actualmente estes sistemas estão para o juiz como os sistemas de apoio à condução estão para o motorista: tornam o trabalho mais fácil mas a última palavra é humana. Na relação entre a Inteligência Artificial e a Justiça o que está a ser colocado em causa, com a tecnologia de que dispomos nos nossos dias, é a sua capacidade de reconhecer padrões de actuação e de actuar de forma inferencial nos casos similares seguintes.

Neste momento a tecnologia não permite computadores-julgadores e mesmo que permitisse ninguém se sentiria confortável sendo julgado por um computador! A última palavra deve sempre ser humana. Nenhum computador – por mais avançado que seja – é capaz de tomar uma decisão informada que tome em consideração todos os relevantes aspectos aplicáveis. Tem-se entendido que a tarefa de julgar, pelas suas específicas características e pela análise de inúmeras variáveis aplicáveis ao caso concreto, deve ser deixada à actividade exclusivamente humana.

Ao nível penal, em diferentes geografias, têm nascido sistemas de apoio ao Juiz tentando harmonizar as sentenças, aumentando a rapidez, eficiência e previsibilidade e reduzindo a discricionariedade. O “raciocínio baseado em casos” é uma metodologia informática de resolução de problemas assente em experiências passadas e em conhecimento que permite tomar as decisões de hoje e está dividido em 4 fases: Encontrar, Reutilizar, Rever e Reter. Primeiramente encontram-se situações passadas, semelhantes à situação presente. Serão conduzidas, na segunda fase, as soluções apontadas nos casos passados ao caso presente, o que poderá exigir alterações. Na terceira fase a solução é testada e será armazenada, por último, para futuros casos. Os “sistemas baseados em regras” apenas transformam em linguagem neural as regras materiais (o direito) existentes e oferecem a solução legislativa para o caso concreto.

Inúmeros trabalhos científicos estudam – especialmente no âmbito do Direito Penal Nenhum computador – por mais avançado que seja – é capaz de tomar uma decisão informada que tome em consideração todos os relevantes aspectos aplicáveis. a discricionariedade judicial: esta pode acabar sendo uma verdadeira arbitrariedade. A Inteligência Artificial, com as suas ferramentas, poderá ser utilizada para a redução deste fenómeno. Para além da redução da arbitrariedade judicial, também ao nível da eficiência poderemos ter bastantes poupanças temporais e financeiras. Em Israel e Reino Unido têm vindo a ser utilizados estes sistemas informáticos para auxiliar na decisão do valor da multa penal a pagar em casos de, por exemplo, condução sem habilitação legal. O computador, dispondo do direito vigente e de um arquivo de casos semelhantes já decididos, poderá aconselhar uma decisão ponderada a qual será validada ou não pelo juiz.

Também ao nível civil têm surgido plataformas de resolução de litígios em linha (O.D.R. –online dispute resolution) que possibilitam a resolução de conflitos de forma totalmente virtual. Ao invés de substituir os tribunais estes sistemas vêm dar resposta a uma nova forma de litigância que provém de conflitos de consumo, plurilocalizados e, por vezes, com valores baixos que não justificariam accionar um tribunal estatal. Imaginemos um conflito decorrente de um negócio em linha entre um comprador americano e um vendedor português sobre defeitos num produto de 50 euros: que cidadão recorreria aos tribunais para solucionar o caso?

Também têm surgido sistemas inteligentes que apresentam a solução óptima para a divisão de bens de um dissolvido casal, por exemplo, tomando em conta o património a dividir e as preferências individuais das partes.

A utilização da Inteligência Artificial na Justiça será fonte de inúmeros problemas e críticas mas também lhe reconheceremos sérias vantagens ao nível da eficácia e eficiência, da produtividade e redução de custos e da redução da arbitrariedade judicial. Será de todo conveniente iniciar um debate aberto, liderado pelos atores da justiça, para que os nossos governantes promovam políticas públicas de modernização administrativa nesta área.

Advogado

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