Haver-se com cada um

Deixar de escrever é mais difícil do que deixar de ser eu.

Ontem à noite apareci no Telejornal da RTP. Foi uma angústia. Não sabia o que me iam perguntar. Sabia que iam ser simpáticos comigo. Parece uma ameaça. É por isso que estou a escrever isto. Parece chantagem: se não forem, terão de haver-se comigo.

"Haver-se" é um verbo tremendo. Haver é existir, mas também é ter. Ficando reflexivo, torna-se numa agressão; numa proposta de violência.

Haver é o melhor e mais português verbo que temos. Também é um bom substantivo. Os nossos haveres são as coisas que temos. Mais bem: são as coisas que nos acontecem e pertencem.

Escrevendo estas coisas estou nas minhas mil e sete quintas. Quando quiser, volto atrás e mudo e corrijo. Se calhar pioro, mas sou eu que passo pela ilusão de melhorar. Falando em directo na televisão, não tenho defesas nenhumas.

A televisão é uma verdade. A pessoa que aparecerá serei eu. Não serei eu a armar-me em pessoa que lá vai. Não será a versão da minha pessoa, como escritor e autor da minha obra mas não da minha vida, que lá aparecerá.

Serei eu, com todas as minhas pobrezas e faculdades, fingindo fazer parte das coisas artificialmente jornalísticas, que nos acontecem.

Hei-de haver-me comigo. É esse o desafio de que mais medo tenho, por me conhecer.

O resto são fantasias escritas sem serem ditas; escritas sem serem apresentadas; escritas, com a maior das razões, como se tivessem sido escritas. Por quem escreve: eu.

Deixar de escrever é mais difícil do que deixar de ser eu.

Sugerir correcção
Comentar