Eventualmente chocante

O filme Lovelace revela o martírio por que passou a actriz que, renegando a indústria que lhe deu fama, mas não proveito, se tornou uma militante antipornografia na década de 1980.

“Vamos todos ganhar Óscares!” é o que se jura ter exclamado um exultante Gerard Damiano, o realizador de Garganta Funda, enquanto assistia ao primeiro teste cinematográfico de Linda Lovelace para esse filme, que se tornou um marco na história da pornografia moderna.

O teste foi o começo de uma celebridade amarga para Lovelace e revelava-a a praticar sexo oral profundo num homem, o que nunca se tinha visto. Essa perícia contribuiu para que se tornasse a mais famosa atriz das películas ditas para adultos, a ponto de ser a primeira figura, entre os seus pares, a merecer dois filmes biográficos, um dos quais, Lovelace, estreia, hoje, num cinema perto de si. Antes dele, Inferno – A Linda Lovelace Story, conheceu um percurso sinuoso e permanece no limbo, sem data de estreia prevista.

Garganta Funda constitui o primeiro filme pornográfico a sair das pequenas, escuras e estigmatizantes salas para filmes interditos a menores e a estrear, em força, num cinema dito comercial. Se a estreia de Lovelace, a 9 de Agosto de 2013, nos EUA, foi quase irrelevante, o mesmo não se pode afirmar de Garganta Funda quando foi exibido, pela primeira vez, a 12 de Junho de 1972, no New World Cinema, em Nova Iorque. Espectadores inebriados pela expectativa de ver a técnica de sexo oral de Linda Lovelace formavam, diariamente, longas filas defronte da bilheteira e o filme tornou-se um assunto palpitante e recorrente nos media durante certo tempo. Ao longo de mais de quatro décadas, a curiosidade acabou por transformar-se em culto, a ponto de o filme ser o mais rentável de sempre: dos 25 mil dólares despendidos para rodar as 17 cenas de sexo em 61 minutos, durante os seis dias de filmagem, em Miami, acumulam-se 600 milhões de dólares de lucro, segundo estimativas feitas em Agosto do ano findo. E Garganta Funda continua a ser visto, independentemente de os actores principais terem morrido. Sem querer, a película quase raiou a pornografia feminista, atribuindo às mulheres o direito ao prazer sexual sem tabus e a ver pornografia e surgiu numa década em que a liberdade sexual espoletava como resultado das lutas de libertação, em particular das mulheres, nos anos de 1960.

Agora, o filme Lovelace revela o martírio por que passou a actriz, a qual havia denunciado no livro Ordeal, que escreveu com Mike McGrady, em 1980, ter sido forçada pelo então marido, Chuck Traynor, a prostituir-se e a contracenar em películas pornográficas, tendo sido pressionada, sob a ameaça de uma arma, a aceitar o papel em Garganta Funda. Renegando a indústria que lhe deu fama, mas não proveito, Linda Lovelace tornou-se uma militante antipornografia, na década de 1980, ainda que tenha sido vista em feiras para colecionadores a assinar tanto o livro autobiográfico como cartazes de Garganta Funda. Ainda assim, o filho, Dominic Marciano, que participou como consultor em Lovelace, regozijou-se pelo filme não transmitir uma versão “cor-de-rosa” da vida da mãe, ainda que a película, segundo ele, não mostre o pior por que passou a actriz.

Na verdade, comparado com os filmes pornográficos heterossexuais (e mesmo homossexuais) que se produzem na actualidade, Garganta Funda quase parece um filme “cândido” (com o seu humor, história curiosa, diálogos e enredo). As feministas, e não apenas elas, erguem a voz contra o modo “utilitário” e descartável com que as mulheres são apresentadas numa indústria esmagadoramente dominada por homens e contra a forma perversa, violenta e humilhante a que as mulheres se submetem nos subgéneros gonzo, gang bang ou bukake. Gail Dines, socióloga norte-americana autora do livro Pornland – How Porn Has Hijacked Our Sexuality (Beacon Press), que tem analisado o fenómeno da pornografia ao longo de 20 anos e promovido centenas de conferências sobre o assunto, denuncia que a pornografia está tão embutida na nossa cultura que se tornou sinónimo de sexualidade, e que isso é um factor de alto risco, nomeadamente para os adolescentes e para os jovens adultos incapazes de as discernir.

Dines e outros estudiosos da pornografia têm denunciado o que já será óbvio para um cidadão atento: a banalização da pornografia. Só para nos centrarmos na actualidade, películas sobre a indústria hardcore, como Lovelace, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, ou com cenas de sexo explícito, como Nymphomaniac, de Lars von Trier; actores porno, no activo ou não, que contracenam em filmes classificados como sendo de qualidade, como James Deen ou Sasha Grey; actores mainstream que encarnam personagens viciadas em pornografia, como Joseph Gordon-Levitt, em Don Jon; programas de rádio ou de televisão que entronizam a pornografia, como os de Howard Stern; e outros inúmeros exemplos contribuem para que a indústria do hardcore, impossibilitada de fazer publicidade pelas razões óbvias, seja publicitada e promovida com sucesso, de forma directa ou indirecta. O apelo ou a piscadela de olho à pornografia a partir do ano 2000 também são visíveis na fotografia, de que é exemplo a de Terry Richardson ou de Juergen Teller; nos videoclips como os de Rihanna ou de Miley Cyrus; na publicidade comercial (é banal a imagem libidinosa de um homem entre duas mulheres, mas nunca o oposto), etc., etc..

A pornografia tornou-se praticamente invisível por via da sua ubiquidade. O recurso ao refinamento e ao design, para expurgar a imagem “suja” que dela se percepciona, também contribui para a sua maior aceitação e integração na cultura popular. Estamos tão familiarizados com a pornografia, de forma subliminar ou não, que temos dificuldade em imaginar um mundo sem ela. A questão que se coloca com acuidade parece não ter solução: como inverter a situação, sobretudo para salvaguardar os mais novos? Em Portugal, o debate é inexistente também devido à ausência de uma indústria da pornografia e de “estrelas” que a alimentem, ao contrário do que já acontece em Espanha, um país católico, que tem actores heterossexuais e homossexuais com carreira internacional. Charlotte Gainsbourg, actriz de Lars von Trier em Nymphomaniac, confessou à edição francesa da Vanity Fair que recusou masturbar um actor porno nesse filme e que também se negou a estar presente na cena em que ele se masturba. Na apresentação daquela controversa película, em Copenhaga, confessou: “As cenas de sexo não foram tão violentas como as de [sado]masoquismo. Essas eram vergonhosas e, sim, um tanto ou quanto humilhantes”. É uma actriz premiada a falar. Imagine-se as actrizes do cinema pornográfico que não têm esse estatuto, prestígio e, acima de tudo, hipótese de escolha profissional. Sasha Grey, porém, tem uma visão diferente: “Não duvido que o marido de Lovelace fosse agressivo, mas isso não significa que toda a indústria [pornográfica] o seja”.

Linda Lovelace decidiu abandonar o hardcore. Sasha também, como tantas outras colegas de profissão. Mas seja qual for o destino dos actores e das actrizes que viram as costas à indústria pornográfica, eles serão sempre identificados, de maneira estigmatizante, como ex-profissionais do hardcore e muito dificilmente poderão encontrar uma reintegração plena na sociedade ou manter uma vida “normal”, apesar das excepções. E isso é o que, em abono da verdade, a indústria pornográfica e a sociedade não conseguem resolver. Nem, tão-pouco, engolir…

Jornalista
 
 
 
 

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