A violência sobre as mulheres

Podemos e devemos criar uma justiça mais próxima da família, procurando desse modo agir sobre as mentalidades e, com o tempo, erradicar um crime tão ignóbil quanto cobarde que é o da violência sobre as mulheres.

O sonho mais comum de qualquer jovem rapariga casadoira é o de encontrar a sua cara metade ideal, o seu “príncipe encantado”, casar-se e constituir família. Mas nem sempre esse conto de fadas é concretizado, pois, em vez do tão almejado príncipe romântico, surge-lhe um “príncipe agressor” que, ao longo de toda a sua vida conjugal, mais não faz do que submeter a mulher à sua vontade, não pretendendo senão controlá-la, a fim de lhe destruir a autoestima. Critica-a constantemente com a intenção de a fazer acreditar que tudo o que ela faz é errado, como, por exemplo, estar sempre a dizer-lhe que não sabe vestir-se nem comportar-se em sociedade.

É impressionante o número de mulheres que sofrem múltiplas violências, sejam elas de ordem física, psicológica, patrimonial ou sexual.

Violência física constitui, evidentemente, o mau trato físico; é todo um comportamento de uso excessivo da força que fere a integridade física ou psicológica da mulher. Violência psicológica consiste na rejeição, depreciação, indiferença, discriminação, desrespeito, impedimento de utilização de métodos contracetivos, forçar a gravidez ou obrigar a mulher a abortar. Violência patrimonial é toda e qualquer conduta de retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos a ela pertencentes, sejam eles instrumentos de trabalho, documentos pessoais, etc. Por fim, violência sexual apresenta-se como toda e qualquer conduta que obrigue a mulher a praticar ou a presenciar relações contra a sua vontade, ou que a leve a comercializar, de qualquer forma, o seu próprio corpo.

A violência sobre as mulheres é de índole cultural e tem raízes fundas no passado, pois já nas Ordenações Filipinas ou Código Filipino (1603) se previa que ao marido traído pela sua consorte era permitido matá-la, assim como o seu amante. Não se julgue, porém, que naqueles tempos finais do Renascimento esse tipo de justiça era exclusivo da Península Ibérica. Não, nada disso, bastando para o confirmar a leitura do Decameron, de Giovanni Boccaccio, por sinal bem anterior a Filipe I de Portugal e II de Espanha.

Passaram entretanto os séculos e criou-se, felizmente, legislação específica para punir o agressor por violência doméstica. Nem podia ser de outro modo, uma vez que se trata de um género de violência que tem vindo a crescer exponencialmente, e, só entre 2010 e 2014, pelo menos 131 mulheres morreram às mãos dos seus “príncipes agressores”. Quanto ao ano em curso, não me parece que o panorama vá ser muito animador, pois, desde Janeiro, já morreram quatro mulheres da mesma maneira. Perante uma tal situação, que caminho seguir?

Ao longo dos últimos anos, tenho — profession oblige acompanhado muitas situações de violência e maus tratos, crimes de particularidade ímpar, os quais, só pelo facto de se ter de enfrentar um moroso processo judicial, constituem uma tremenda tortura para a vítimas. Estas não se sentem confortáveis com o terem de depor contra os respetivos maridos agressores num tribunal onde, nesse mesmo dia e na mesma sala, confluem delinquentes por crimes que vão desde o tráfico de estupefacientes ao roubo. E não se sentem confortáveis, já se vê, porque essas vítimas sabem de antemão que têm de expor publicamente a sua vivência conjugal e muitos aspetos da sua intimidade, o que faz com que não tenham confiança no procedimento judicial, nem acreditem que a punição de quem as agrediu resolva a sua situação. Acreditam até que, muitas vezes, tudo se vai complicar ainda mais, sendo habitual ouvir-se: “Ele depois deixa de pagar a pensão aos filhos e como vai ser?”

Como resposta a este e a outros graves problemas levantados pela violência doméstica, parece-me que a solução vigente no estado de Nova Iorque é, de todas as que conheço, a mais adequada, ou seja, criar, como ali se criou, um “juízo de família integrado” (“Integrate Domestic Violence Court, one judge, one family”). Por outras palavras e dito para que todos percebam: “uma família um juiz”, isto é, toda a conflitualidade de uma mesma família é dirimida por um único juiz.

Assim, e propondo uma solução idêntica para o nosso país, o mesmo juiz acompanharia uma determinada família no decorrer dos seus conflitos, fossem eles no âmbito do direito da família ou do foro do direito penal. O mesmo juiz estabeleceria então o regime das responsabilidades parentais e decidiria dos eventuais incumprimentos; em caso de divórcio, procederia à tentativa de conciliação dos cônjuges; e, na impossibilidade dessa conciliação, procuraria obter o acordo de ambos para a conversão do divórcio sem consentimento em divórcio por mútuo acordo, homologando o seu processo; e definiria as penas e os meios de proteção à vítima de violência doméstica e familiar.

O juiz, ao dirimir todos os conflitos de uma mesma família, adquire um conhecimento global da problemática social que a envolve, tornando-se mais capaz de tomar decisões consistentes e destinadas a solucionar todos os problemas adequadamente. E, ao longo do seu percurso profissional, o acompanhamento que fará a essa família não só assegurará a sua confiança, como, sem dúvida, conduzirá a uma notória redução da violência conjugal.

É verdade que não existem fórmulas para se mudar comportamentos sociais até porque, em matéria de violência doméstica, esses comportamentos atingem todas as classes, sem qualquer exceção , mas podemos e devemos criar uma justiça mais próxima da família, procurando desse modo agir sobre as mentalidades e, com o tempo, erradicar um crime tão ignóbil quanto cobarde que é o da violência sobre as mulheres.

Advogado, sócio partner na Dantas Rodrigues & Associados

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