Costumava levar-lhe hortênsias

Não havia desavença política ou civilizacional que nos desunisse, mesmo quando ele me “irritava” e eu o desconcertava.

Nesse dia o Miguel entrou no ar na TVI antes de mim, pelas 19h, eu só mais tarde, mas tive pena: gostava – e às vezes pedia – para que debatêssemos juntos.

Sem que nada ideológica ou politicamente nos unisse, havia alguma coisa que me atraía, a inteligência, a civilidade, a delicadeza, a boa percepção das coisas – nunca, nenhum ângulo ou nuance deixavam de ser por ele comtemplados e “lidos” politicamente. E havia a probidade, o Miguel era probo e eu gostava disso. Dessa vez, era dia 25 de Abril, fora mais uma vez assim, achei-o em excelente forma no ecrã, andava mais bem-posto, mais magro, tinha uma namorada, a Filipa, sobre quem falávamos às vezes os dois.

De longe eu aplaudia essa espécie de viragem de um Miguel mais taciturno e meio trapalhão para este Miguel aprumado e risonho que talvez se acercasse então de algo de parecido com a felicidade ou, quem sabe, da harmonia da vida com as suas coisas. Lembro-me muito bem de que nessa sexta-feira, 25 de Abril, guiei depressa até Queluz para ver se ainda o apanhava à saída dos estúdios. Embora tivesse retido o que ele dissera, teria gostado que cruzássemos mais e mais opiniões sobre aqueles dois “25 de Abril”, o democrático, no Parlamento, e o radical/revolucionário, do Largo do Carmo, mas não deu, foi uma pena, não nos vimos.

Três dias depois (ou seriam só dois?) soube que ele iria morrer. Depressa e inexoravelmente, há pessoas que parece que não morrem, outras que morrem muito devagar e sem ser inexoravelmente, o Miguel não. Partiria inexoravelmente, palavra indizível, mas não encontro outra tão parecida com uma lâmina afiada.

Há imensos anos, quis conhecê-lo. Trabalhava no DN e as suas crónicas sobre televisão encantavam-me de tal modo e achava-as tão bem boladas e tão “diferentes” do costume desses dias longínquos, que pedi ao seu irmão Carlos e meu amigo que me apresentasse o mano mais novo. Coisa logo feita, à mesa do almoço, na Versailles. Apreciei tanto esses momentos que jamais os esqueci: a eles e ao Miguel. A nossa amizade só cresceu desde então. E com essa sabedoria com que o tempo por vezes abençoa as pessoas, foi-se transformando numa afectuosa cumplicidade que tudo incluía e nada impedia: não havia desavença política ou civilizacional que nos desunisse mesmo quando ele me “irritava” e eu o desconcertava, porque ambos sabíamos que isso não tinha a menor importância ao pé do resto. E o “resto” não é senão esse indefinível “sentimento” que se tece entre os seres humanos, mesmo que discordem, queiram mundos diferentes, tenham pertenças distintas, ideias opostas, apreciações antagónicas, se vejam pouco, muito ou assim-assim. Entre nós foi esse também indefinível “resto” que teceu a nossa cumplicidade: para além do trabalho, do debate público ou privado, do riso e do sorriso, das opções de cada um, da vida de ambos. Gostávamos muito um do outro, em resumo.

Trabalhei infelizmente pouco com ele: não somos do mesmo tempo no PÚBLICO e as minhas colaborações, quando ocorrem, são ofício que trato com o Nuno Pacheco, amigo antigo. Mas recordo dois momentos “especiais” vividos neste jornal com o Miguel e gosto de os evocar hoje porque o PÚBLICO, ao qual tanto deu e no qual tanto suou, foi, sem que o soubéssemos, a sua última casa.

Em Novembro de 2011 foi o Miguel que editou – com estofo e profissionalismo – uma entrevista que aqui fiz com Pedro Passos Coelho. A entrevista era longa, tinha a responsabilidade de ser a primeira dada a um jornal pelo primeiro-ministro, exigia ponderação, seriedade, equilíbrio, trabalho. De tudo isso ele cuidou após conversa meticulosa comigo, sentado a uma mesa do PÚBLICO, eu a seu lado com o print da entrevista na mão, ele com o texto no ecrã. E há poucos meses (Fevereiro? Março?) aceitou a ideia que lhe propusera de uma conversa com Eduardo Marçal Grilo, “faça, faça...”, e depois não escondeu quanto apreciou o resultado.

Neste Inverno, solto e bem-disposto, almoçando em minha casa, falou-me de um trabalho sobre Rui Rio (que “andaria Rio a fazer?”) que gostaria que eu fizesse. Concordámos que era melhor “mais para adiante”.

Há dias, no hospital, abrindo aquele sorriso doce com que se ia despedindo, voltou a falar-me “do Rio”: “Você não se esqueça que temos isso aprazado...”

Costumava levar-lhe hortênsias, daquelas de folha dobrada, desdobradas em azuis. Azul anil, azul tinta, azul céu, azul alilasado, azul arroxeado, azul rosado. Substituíam a alegria que eu já não tinha em mim para dar ao Miguel e depois ficávamos de mão dada a olhar para elas, azul arroxeado, azul céu, azul tinta, azul anil... 

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