Um ministro, várias missões

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A escolha de Rui Machete para ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros tem a virtude de cumprir várias missões.

Algumas sobretudo simbólicas, mas todas relevantes. Do ponto de vista de um governo e de um primeiro-ministro fortemente desgastados por uma crise política que lhes ia sendo fatal, o antigo líder do PSD oferece a experiência e a credibilidade de alguém que participou nos acontecimentos que formaram a democracia portuguesa desde a Revolução e que desempenhou um papel de relevo nas grandes crises do seu partido e do país. Machete traz para o Governo a respeitabilidade dos cabelos brancos e da história do PSD, demonstrando ao mesmo tempo que há velhos "barões" do partido que não são necessariamente cavaquistas, mesmo que não sejam liberais.

Mas não traz só isso. A sua segunda missão tem a ver com o facto de saber por experiência vivida que um entendimento entre o PS e o PSD é quase sempre fundamental nos momentos de crise nacional como o que estamos a viver. Foi ministro e vice-primeiro-ministro do Governo do Bloco Central liderado por Mário Soares (1983-85), quando, pela segunda vez, o país precisou de pedir auxílio ao FMI para evitar a bancarrota. Por sinal, depois de um governo da Aliança Democrática que deixou as contas externas passar todas as linhas vermelhas. Foi ele que substituiu Carlos Mota Pinto, o líder do PSD que negociou com Soares o IX Governo Constitucional em 1983, quando o líder social-democrata morreu subitamente. Foi ele que garantiu, já depois da vitória de Cavaco Silva no célebre congresso da Figueira da Foz, que o PSD se mantinha fiel ao tratado de adesão, assinado a 12 de Junho, um dia antes de Ramalho Eanes dissolver o Parlamento e convocar eleições. Nesse dia, no Mosteiro dos Jerónimos, enquanto Machete assinava o tratado, o actual Presidente da República ainda dizia aos jornalistas que, em caso de vitória eleitoral, exigiria a sua renegociação.

Machete vê hoje a crise que o país atravessa à luz dessa experiência. Disse várias vezes que era necessário um "acordo de regime" para vencer esta crise. Criticou Passos Coelho por ter cortado as pontes com os socialistas. Nesta tentativa de "regeneração" do Governo, que pretende abrir uma nova fase no cumprimento das obrigações para com os credores europeus, Machete será uma voz ouvida no Conselho de Ministros.

Estas são as suas "missões" nacionais. Porventura, tão ou mais importantes que as funções de chefe da diplomacia portuguesa. Paulo Portas elegeu a diplomacia económica como a grande prioridade da política externa. Teve um bom desempenho. Ainda não se sabe se vai querer levar a AICEP com ele, voltando a tirá-la das Necessidades. O anterior ministro deu pouca atenção à política propriamente europeia, adaptando-se a uma realidade que faz da Europa um assunto de política interna que é, cada vez mais, da competência do primeiro-ministro.

As decisões europeias mais importantes são hoje tomadas no Conselho Europeu. Os ministros dos Negócios Estrangeiros deixaram de ter um lugar à mesa. A crise fez do Eurogrupo o "governo permanente" da zona euro. O próprio Passos Coelho escolheu um ministro adjunto que conhece profundamente a realidade europeia. O novo ministro terá de definir o seu lugar neste novo contexto europeu que resume quase tudo à economia. Resta-lhe a dimensão extra-europeia da diplomacia, onde se joga hoje a capacidade portuguesa para tirar partido da globalização.

Machete esteve 22 anos à frente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Isso permitiu-lhe um conhecimento profundo da relação de Portugal com os Estados Unidos e das relações internacionais. Isso não fez dele um "atlantista". A sua visão está em linha com o consenso que quase sempre prevaleceu entre o PS e o PSD sobre a natureza euro-atlântica da inserção estratégica de Portugal. Num texto que escreveu em 2008, o agora chefe da diplomacia portuguesa defendia já que a nova realidade mundial que a crise financeira começava a desenhar voltava a colocar a relação transatlântica no centro da política europeia. Também neste capítulo fundamental, Machete poderá ter uma palavra a dizer, contrariando a visão por vezes demasiado "económica" que este Governo tem da política europeia e internacional. Não foi uma segunda escolha. O nome de Nuno Brito, embaixador em Washington, não partiu do gabinete do primeiro-ministro. Terá partido, provavelmente, dos meios próximos de Durão Barroso. Foi convidado na véspera? Teria de ser assim. Só depois de o Presidente ter constatado o fracasso das negociações para a "salvação nacional" e confirmado que o Governo deve cumprir a legislatura seria possível convidar Machete.

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