Sonhos felizes

O grande erro de Álvaro foi ter admitido que os seus colegas o apoiavam, quando o que eles queriam era apeá-lo.

Já leste o livro do Álvaro? O anterior ministro de cinco ministérios que Passos arrancou de Vancôver e que agora está em Paris, na OCDE? Tito Zagalo entrou a disparar. Mas que tem o livro, além de elogio em boca própria e das intrigas mesquinhas entre Portas e Gaspar, retorqui?

Meu caro, este livro tem de ser lido por todos os que aspiram ao poder. É uma antítese de O Príncipe. Enquanto Maquiavel ensinava a conquistar e deter o poder, este ensina como se não deve aspirar a excesso de poder, como se não deve ter ambição excessiva no realizável, como o peito aberto dos viriatos do século XXI não serve de couraça para coisa nenhuma. Foi a minha vez de defender o homem: olha que ele se limitou a cumprir o memorando da troika e a aplicar à letra tudo o que lá constava sobre empresas públicas de transportes, máfias do trabalho portuário, rendas incomensuráveis das energéticas, captura do Estado pelas organizações profissionais, reunião dos fundos de capital de risco e muitas coisas mais. Pois é, tudo isso e muito mais, mas o Álvaro necessitava de lições prévias de ciência política, em vez de aulas práticas de governação, on the job training, o que nos custa e custará caro. De menos estamina e mais calma, para temperar o seu ambicioso plano de se tornar o Ferreira Dias do início deste século. Assim ficou apenas como réplica do Daniel Barbosa, que saiu a bater com a porta ao dr. Salazar.

O livro merece ser lido, não pelo desigual conteúdo em que se confundem sucessos reais com meras intenções, medidas corajosamente aplicadas, muitas vezes contra o partido que o escolheu, com outras que desde o início se anunciavam como falhadas. O livro deve ser lido sobretudo pelos socialistas, que se ajeitam já a dar ao rabo ao cheiro do poder, proclama Tito. Não basta aquecer os corpos com uma união gritada a uma só voz, erguendo a escada por onde passarão os novos assaltantes, há que saber onde colocar a escada e por onde penetrar na fortaleza. Álvaro teve a vida muito facilitada por três factos políticos: o poderoso aríete que era o memorando, capaz de abater as muralhas mais grossas, a lassidão do PS, cansado e dividido, e a completa exaustão do modelo económico híbrido de uma no cravo das reformas, outra na ferradura da paralisia. Nem sequer foi necessário usar de muita força, porque as chaves do castelo estavam do lado de fora da porta. Mas Álvaro sabia o que queria, continuou Tito. Porventura de forma esquemática e livresca, considerando tão lógicas as soluções que não admitia como pudessem sofrer embargo – o qual vem sempre de dentro, nunca de fora.

Álvaro bem lidou com sindicatos, cujo patriotismo até elogia; bem lidou com os tigres de papel das empresas, no fundo meros conglomerados de interesses que se desfazem a sopro de vento forte, como se viu no BES. Bem lidou com a oposição, mais desejosa de ser parte da solução do que parte do problema, ao contrário de todas as oposições. E acabou por relegar para saga folclórica a antes bem organizada contestação dos extremos. Tanta brandura para Passos, Portas e companhia e tanta agressividade quando são os socialistas quem manda, ainda lamentei, em surdina. O grande erro de Álvaro, prossegue Tito, foi ter admitido que os seus colegas o apoiavam, quando o que eles queriam era apeá-lo. Por tosco, rude, inexperiente, assomadiço, todos os defeitos lhes serviram para o aniquilarem nos media. Redigido o epitáfio, estava o esquife pronto. A estocada final foi antecedida pelo harakiri de Gaspar, chorando-se de crimes próprios que no íntimo não crê ter cometido. Foi desferida em golpe de génio, ou de sorte, por Portas que conquistou um degrau no Governo, um cartão de milhas infindáveis para dar várias vezes a volta ao mundo e o ambicionado Ministério da Economia. Tudo sob a aparência de grande maestria de Passos. Como vês, o que parecia impossível frente ao descalabro psíquico do antigo primo-ministro de facto acabou por se conjugar no rejuvenescimento do modelo, um segundo fôlego com novos actores e actrizes. Não faltou a partilha dos salvados: Gaspar ficou com o FMI, de que era agente in pecto, em Lisboa, e Álvaro recolheu à OCDE da Rua Pascal, em Paris, uma instituição tão pouco apreciada pelos que guindaram Passos ao poder.

Arquivado, por falta de provas, o caso das luvas na compra dos submarinos. Alguns jornais titulavam que Portas podia agora dormir descansado. Surpreende-me o tom chocarreiro, comenta Tito, próximo de quem tem firme opinião sobre o envolvimento de altos figurões. Não te surpreendas, retorqui, basta pensar que, se Portas reagisse, reabria o dossier de que ele foge a sete pés. Confesso que ainda me admiro como tudo isto é possível, responde Tito. Foram condenados na Alemanha os corruptores activos, os passivos por caso idêntico, na Grécia. Entre nós, vem agora a Justiça queixar-se de lhe não terem respondido da Alemanha e do offshore das Baamas, ao pedido sobre a tramitação do dinheiro. Para, no final, se concluir que nem valia a pena, por o caso estar prescrito. Entretanto, no inquérito parlamentar, o dr. Salgado enumerou, clarinho, o destino dos trinta milhões de luvas, os cinco repartidos pela família (mal deu para as prendas de Natal desse ano) mais o sexto milhão que foi para algures, ou alguém. Nem se esqueceu de dizer que, tanto quanto era do seu conhecimento, esse milhão não teria sido destinado a nenhuma figura política. Então isto não te basta, Tito? Ou não acreditas na palavra de banqueiro? Meu caro, já vi de tudo. Não te admires se, neste negócio fechado e liquidado pelo Governo anterior a Sócrates, venham agora a acusar este último de ser o receptador!

Artigo Lua

Falsa partida

A Comissão Europeia centrará prioridades no plano de investimentos, na agenda digital, na União da energia, na mobilidade dos trabalhadores, no reforço da arquitectura da união económica e monetária, no mercado único, na competitividade da indústria. Sobre políticas ambientais e sociais nem um parágrafo. Já se não fala em ajustamento orçamental, nem estabilização. Fala-se de crescimento e emprego. Também se não refere a protecção social universal, o direito ao trabalho, o reconhecimento sindical e a negociação colectiva. A sociedade salarial está ausente. Palavras em divórcio da acção. O tempo será juiz. O último conselho foi convidado a apoiar, mas não acrescentou motivação. O estado de graça acaba em Junho de 2015. Em coerência com as grandes orientações políticas da Comissão Juncker, por essa altura, o plano de investimentos adicional estará no terreno, as medidas propostas no programa anual em concretização e enquadradas pelo orçamento em execução. Haverá resultados? Há que dar prioridade ao banimento da optimização fiscal das multinacionais, pondo fim a práticas perversas de concorrência entre Estados. Os impostos deverão ser cobrados no país onde são gerados rendimentos, sem antecipação (tax ruling) e estabilizados critérios para cálculo das matérias colectáveis do imposto sobre sociedades. A intenção está no programa. É a resposta ao affaire Luxleaks. Em Março conhecem-se as medidas. O tempo não joga a favor. A decepção pode submergir a ambição, restará uma segunda partida.

João Ferreira da Cruz, economista

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