Reforma eleitoral: só mesmo para reabrir o debate?

Marina Costa Lobo e José Santana Pereira apresentaram recentemente, na Fundação Gulbenkian e num evento em parceria com o Instituto de Políticas Públicas, um working paper intitulado Uma proposta para a reforma do sistema político: a abertura das listas partidárias nas eleições legislativas. É sobre este estudo que vos falarei hoje, dividindo a análise em pontos fortes e pontos fracos. Naturalmente, o objetivo é refletir sobre a necessidade, o rumo e a exequibilidade das reformas eleitorais em Portugal.

Antes de passar à análise propriamente dita, gostava de saudar a evolução do pensamento da minha colega e amiga Marina Costa Lobo neste domínio. Entre 2007 e 2008, a pedido do GP-PS, fizemos um estudo sobre a reforma do sistema eleitoral [1], com vista a "melhorar a representação política", criando condições institucionais para uma maior proximidade entre eleitores e eleitos, no qual propúnhamos um sistema com dois segmentos (219-229 deputados), um nacional (com um círculo nacional, idealmente com cerca de 80 a 90 deputados, com funções de compensação da desproporcionalidade gerada nos pequenos círculos regionais e usando "listas fechadas e bloqueadas") e um outro com vários círculos regionais (6 a 10 lugares cada) e "voto preferencial" em "listas fechadas e não bloqueadas". Ou seja, nesta componente regional, os eleitores poderiam não apenas escolher o partido mas também designar o candidato da sua preferência e assim determinar a escolha dos deputados. Além disso, assumíamos que, primeiro, não havia problemas globais de governabilidade, pois eles afetavam apenas o quadrante esquerdo do sistema político, e, sobretudo, os problemas que havia e há (à esquerda) não tinham a sua raiz nas instituições eleitorais. De qualquer modo, propúnhamos "aumentar a governabilidade sem comprimir a proporcionalidade" usando a "moção de censura construtiva" e estimulando a cooperação interpartidária através das "listas aparentadas". Nessa altura, Marina Costa Lobo expressava ceticismo quanto aos impactos da abertura das listas na disciplina de voto dos deputados [2], em particular, e sobre o impacto da proposta no seu conjunto sobre a governabilidade do sistema, em geral [3]. Hoje parece convertida à ideia de abertura das listas… Ainda bem, bem-vinda ao "clube"!

Entre os pontos fortes do estudo, aponto cinco. Primeiro, a ideia de que a participação dos cidadãos é um esteio essencial para melhorar a "responsividade" do sistema político e que a abertura das listas, através do estímulo a uma maior proximidade entre eleitos e eleitores, pode não só contribuir para atingir tal desiderato como pode aumentar a satisfação dos eleitores com o funcionamento da democracia [4]. Segundo, a ideia de que a legitimação política não se faz apenas pelos resultados socioeconómicos da governação mas passa também pela melhoria dos procedimentos. Também aqui vejo com agrado uma evolução no pensamento de Marina Costa Lobo [5]. Em terceiro lugar, é de louvar também a lucidez quanto ao alcance limitado das reformas eleitorais (independentemente da performance macroeconómica) [6]. Quarto, a ideia de focar a reforma em determinados aspetos aparentemente mais consensuais ("a aproximação entre eleitores e eleitos"), de modo a fazê-la avançar. Finalmente, a ideia de que uma tal reforma, com "a abertura das listas", deve ser feita de forma moderada, de modo a contrabalançar o peso dos partidos e das ideologias com a personalização política.

Passemos aos pontos fracos. Primeiro, não se percebe o que é que este estudo adianta face ao que já se conhecia no domínio. Por um lado, a ideia de propostas moderadas que avançassem na personalização mas sem pôr em causa o papel dos partidos era já apresentada no nosso estudo de 2008: "listas fechadas e bloqueadas" no círculo nacional, para preservar o papel dos partidos na construção das bancadas; "listas fechadas e não bloqueadas" nos círculos regionais mas preservando listas previamente ordenadas pelos partidos e dando ao eleitor a faculdade de voto na lista (aceitando integralmente a ordem proposta pelos partidos) ou de voto no candidato. Segundo, poder-se-ia dizer que um dos aspetos inovadores deste estudo seria o de avançar isoladamente com a ideia de "aproximação entre eleitores e eleitos", que seria mais consensual e não necessitaria de revisão constitucional. Porém, por um lado, embora a "abertura das listas" não careça de revisão constitucional, carece sempre de 2/3 dos votos no Parlamento; mais importante, por outro lado, a evidência mostra que, seja no seio, seja entre cada um dos dois grandes partidos, a forma de operacionalizar a ideia de "aproximação entre eleitores e eleitos" é controversa [7]. Terceiro, seja por motivos logísticos (imagine-se um boletim de voto em Lisboa com 48 candidatos vezes 5 a 10 partidos…), seja por causa da necessidade de se proporcionar aos eleitores condições para conhecer e responsabilizar os deputados, para tornar eficiente o uso do voto preferencial, é absolutamente necessário que "a abertura das listas" se processe em pequenos círculos (na Holanda, com um círculo de 150 deputados, é aplicado o "voto preferencial" mas para tal o território é partido em 19 círculos de candidatura). Ora o estudo nada diz sobre como operacionalizar o voto preferencial nos atuais círculos, o que redunda numa enorme frustração. Quarto, o estudo fala-nos de várias maneiras de a cidadania tentar influenciar uma eventual reforma eleitoral. Porém, curiosamente, deixa de fora as assembleias deliberativas de cidadãos, um modelo já testado nalguns países [8]. Quinto, o estudo alega, e bem, que a ligação entre cidadãos e eleitos é fundamental para assegurar uma congruência entre as preferências dos primeiros e o policy making. Todavia, se é certo que a abertura das listas pode ajudar neste domínio, os estudos mostram que tal se processa mais ao nível da ideologia do que da personalização do voto [9]. Neste domínio, é impossível ignorar que embora o sistema proporcional português tenha permitido uma razoável congruência ideológica entre eleitores e eleitos ao nível do Parlamento, tal não acontece ao nível dos governos, dada a exclusão sistemática da esquerda radical dos mesmos. É aqui que podem entrar as medidas para fortalecer a governabilidade sem comprimir a proporcionalidade, ou os estímulos à cooperação interpartidária. Porém, esta última dimensão é desprezada pelo estudo. É por tudo isto que este estudo me parece ter potencial mas ser ainda demasiado embrionário, servindo por ora só mesmo para reabrir o debate mas sem trazer nada de realmente novo do ponto de vista substancial.

[1] André Freire, Manuel Meirinho, Diogo Moreira, Para Uma Melhoria da Representação Política. A Reforma do Sistema Eleitoral, Lisboa, Sextante, 2008.

[2] Quer na altura, quer mais recentemente, foi apontada abundante evidência empírica do carácter infundado de tais receios acerca dos impactos da abertura das listas sobre a disciplina de voto. Ver, por exemplo, Audrey André, André Freire e Zsófia Papp, "Electoral rules and Legislators’ Personal Vote-Seeking", em Kris Deschouwer e Sam Depaw (organizadores), Representing the people. A survey among members of statewide and substate parliaments, Oxford, Oxford University Press, 2014, pp. 87-109.                                                        

[3] Ver Marina Costa Lobo, "A Reforma do Sistema Eleitoral", in Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica, Dossiê sobre a Reforma do Sistema Eleitoral (pp. 175-201), 2009, pp. 190-191.

[4] Com base num inquérito de 2008, demonstrámos precisamente que a preferência dos portugueses pela abertura das listas estava associada a uma maior insatisfação com o funcionamento da democracia, mesmo depois de controlarmos os outros fatores relevantes: André Freire e Manuel Meirinho, "Institutional reform in Portugal: From the perspective of deputies and voters perspectives", Pôle Sud – Revue de Science Politique, N.º 36, 2012/1, pp. 107-125.

[5] Ver Marina Costa Lobo, op. cit., p. 191.

[6] Defendemos precisamente este ponto recentemente em artigo desta coluna: André Freire, A crise das democracias e a reforma dos sistemas eleitorais, PÚBLICO, 24-9-2014.

[7] Ver Freire e Meirinho, 2012, op. cit.

[8] Ver Fournier, Patrick et al, When citizens decide: Lessons from citizens’ assemblies on electoral reform, Oxford, Oxford University Press, 2011.

[9] Ver Powell, G. Bingham Jr. (2000), Elections as Instruments of Democracy, New Haven, Yale University Press.

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