Reforma do Estado

Tem andado esquecida pela coligação, ainda não refeita do falhanço do documento Portas, um conjunto de banalidades em caixa alta. O Estado "está", não se deixa reformar com facilidade. Normalmente, todos desejam manter a situação em que se encontram, sentem-se confortáveis, funcionários, dirigentes políticos, empresas, famílias. Isto era verdade até há quatro anos, depois tudo mudou.

Os funcionários levaram cortes, horas extra espremidas, perderam parte da pensão, viram congeladas promoções, anulada a possibilidade de ascender a uma chefia, suspensos os prémios de desempenho, esgotado o dinheiro para formação, instalada uma ameaçadora possibilidade de despedimento. Adjuntos e assessores ocupam sem competência as funções dos serviços, concorrem a concursos de faz-de-conta que seleccionam os três melhores, para afinal o ministro escolher sempre o do PSD-CDS. Sentem a arrogância escalar os muros da ignorância, o arbítrio substituir a legitimidade e a pressão política alastrar sobre os serviços.

Os políticos do Governo estão felizes: pessoal mais submisso, amigos na corte, dinheiro escasso mas que sempre chega para pagar a assessores de fraldas como se fossem veteranos, automóveis pretos a correr, iphoneszunir. Se alguns, mais sóbrios, perguntavam para quê tantos assessores, as respostas chegam agora: servem de varejeiras a zumbir nas redes sociais, tentando destruir o adversário com anónimos impropérios e insultos.

As empresas, como sempre, querem que as deixem em paz e que parem de mudar leis e subir impostos. Justamente o que não aconteceu em quatro anos: mais de sessenta alterações fiscais, uma dezena de orçamentos retificativos, leis inconstitucionais que depois regressam à base com enorme atrito, tribunais que não saíram do parque jurássico em rapidez e economia, atolando-se em alterações de locais e sistemas, gerando caos de que ainda se não recompuseram.

As famílias assistiram a tudo com o fatalismo estupefacto de a cada semana registarem contradições de promessas que tinham por sérias, a cada mês receberem menos, a cada ano verem anulados e depois reintegrados os subsídios, eriçados de sobretaxas e novos escalões do IRS, pauperizando uma classe média esticada entre filhos adultos desempregados ou mal pagos e filhos jovens sem conseguirem mais que um estágio do IEPF, com sorte um emprego rotativo de salário mínimo. Vendo partir braços e cérebros, numa dor mitigada apenas pelo Skype. De não saberem onde colocar as crianças quando as escolas ainda não abriram, onde colocar pais e avós por escassez de cuidados continuados, ou de terem que ir agora à urgência do privado, onde são despachados se custarem mais do que valem, vendo ao lado uma unidade de saúde familiar a acolher com decência e no mesmo edifício uma outra, do passado, onde madrugam desde as 6 da manhã. De não saberem quem os pode ajudar a encontrar emprego numa idade desesperada para ser útil. De não descortinarem a razão por que fecharam o restaurante, o lugar de hortaliça, a loja de retrós, a pequena papelaria, quando todos os vizinhos que encontram tanto o lamentam. Envergonham-se de dizer que eram só marido, mulher e empregada, mas que a subida do IVA, a fuga de clientes por falta de recursos, a impossibilidade de trespasse, a subida da renda, a dificuldade de pagar a previdência, tudo isso projetou seis braços no desemprego, secou impostos e contribuições, anulou consumos, gerou depressões.

Para o ilusionista Portas tudo melhorou agora e estamos perto de ser um dos dez países líderes em competitividade. Com os dedos da mão conta os sucessos da esplendorosa política: sobe o emprego, sobe a confiança empresarial, sobe o produto, sobe o investimento, sobem as exportações. Seria bom se a dívida não aumentasse, a balança comercial resistisse a cada tremor da economia, o défice fosse controlado, o PIB saltasse acima dos valores de 2002. Esfusiante de verve, elétrico, corre feiras, televisões, palcos, jantares, garboso dos seus êxitos. Cuida que os aplausos da corte reboam pelas abóbadas onde vagueiam abandonados, irritados, revoltados, os eleitores que vitimou. Capaz de tocar qualquer instrumento, da harmónica ao serrote, colocando a voz de palhaço-rico, e zurzindo o povo com o pingalim de circo. Julga que convence. Passos, alheado da verdade, enreda-se em explicações inverosímeis sobre o BES, discute na rua com senhoras de cor-de-rosa sem papas na língua, que lhe apontam outra verdade, afirma conhecer famílias que pagam menos impostos que há quatro anos, proclama que o Estado Social está melhor que nunca. Avançou na rádio com o brio de um acossado por indignados do BES. Os seus fans imoderados gritam que venceu, as varejeiras dos tweets proclamam-no César entrando em Roma. Que importa a sua dificuldade em falar com o Povo, se dermos ao Povo o pão das promessas e o circo do futebol!

Andei na semana passada por hospitais e li os seus números: menos pessoal permanente, urgências e consultas cheias, menos cirurgias programadas. Vencimentos aviltados com os cortes das horas. Falta de anestesistas, ortopedistas e até de cirurgiões. Faltas graves de enfermeiros. Redução de atividade por impossibilidade de contratar substitutos dos que desistem, fatigados ou simplesmente frustrados. Olhares velados pelo medo de falarem, autómatos cumprindo com rigor, mas sem alegria, tarefas cada vez mais pesadas e mais mal pagas. Imaginem o que é, os enfermeiros baixarem de 1500 para os 900 euros? Médicos diferenciados que compunham a renda com horas extra, ainda que de sacrifício e que agora recebem entre 1600 e 1900 euros? O que se gasta menos em ordenados e salários engorda sem parar a despesa em serviços de terceiros. Com as consequências que se viram no último Natal, nas urgências: o caos instalado ao menor acréscimo de procura. Foi esta a reforma do Estado de Passos e Portas.

Domínio de acção

Três propostas eleitorais determinarão a nossa ação futura na UE. A Coligação PàF persiste na continuidade. Limita-se a propor correções às insuficiências de Maastricht, a que soma o mercado único de serviços, do digital e da energia; reforma da zona euro, reorientando o semestre europeu; finalização da União Bancária, retomando a ideia de um Fundo Monetário Europeu; mais política externa e de segurança comum; conclusão de acordos de livre comércio (TTIP). Reafirma o modelo que liberaliza, desregula, privatiza. Nos antípodas, os que reconhecem impossibilidade em cumprir, a um tempo, metas orçamentais definidas, pagar a dívida pública, inverter a austeridade, combater o desemprego, salvar o Estado Social. O corolário que defendem é a saída unilateral da zona euro, mesmo que só em estudo. Os socialistas europeus são pragmáticos, confiam no projecto de integração monetária, reconhecem avanços da nova Comissão com a flexibilidade do Tratado Orçamental, o papel estabilizador do BCE nos mercados de dívida, o estímulo ao investimento do Plano Juncker, porém, entendem necessário recuperar a confiança dos cidadãos no modelo social europeu. Mais emprego, maior coesão social – um novo Eurogrupo para a Coesão Social e o Emprego –, defesa do euro como factor de convergência para resolver desequilíbrios económicos e orçamentais, maior ambição orçamental da UEM, completar a União Bancária (Mecanismo Europeu de Garantia de Depósitos, Fundo de Resolução), reforçar a cooperação europeia com instituições fortes. Pode não haver divergências insanáveis entre evolucionistas e socialistas. O marcador é a atitude: proactiva em vez de passiva. O seguidismo não é inevitável, fragiliza-nos. Um novo ciclo exige outra voz que afirme Portugal. João Ferreira da Cruz, economista

 

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