Paridade de género: prevenir a banalização legislativa

O Governo anunciou que, no início da sessão legislativa, vai entregar na Assembleia da República uma proposta de lei que estabelecerá quotas mínimas por sexo nas “entidades da administração direta e indireta do Estado”, nos “órgãos de administração e de fiscalização das empresas públicas do setor empresarial do Estado”, nas “entidades do setor empresarial local” e nas “empresas cotadas em Bolsa”.

Em Portugal, a rotatividade de género já está prevista na presidência das entidades reguladoras. As restantes medidas vinham sendo formuladas, como a possibilidade de introdução de quotas nas administrações das empresas cotadas, que não têm qualquer mulher na liderança.

A bondade deste pacote legislativo contrasta com a realidade da ausência de mulheres na futura administração da Caixa Geral de Depósitos, situação que levou sete deputadas do PS a questionaram o ministro das Finanças.

Porém, a inspiração para o anúncio das propostas governamentais terá sido a celebração dos dez anos da publicação, em Diário da República, da Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto, conhecida como “Lei da paridade”. Este diploma estabelece que as listas eleitorais para a Assembleia da República, o Parlamento Europeu e as autarquias locais devem assegurar uma representação mínima de 33% de cada um dos sexos.

Em Portugal, as primeiras propostas para a introdução de quotas de género na esfera política remontam à segunda metade dos anos de 1990, durante os Governos socialistas de António Guterres. A Lei da Paridade seria aprovada em 2006, durante outro Governo socialista, liderado por José Sócrates. As medidas previstas foram aplicadas pela primeira vez nas três eleições de 2009.

Ora, o artigo 8.º da Lei da Paridade prevê uma reapreciação das normas ao fim de cinco anos, onerando a Assembleia da República com a responsabilidade de avaliar o seu impacte na promoção da paridade entre homens e mulheres e de proceder à sua revisão de acordo com essa avaliação.

Não por acaso se acautela esta avaliação. Uma estratégia de “discriminação positiva” ou de “paridade acelerada” deve ter justificação cabal – neste caso, corrigir um desequilíbrio estrutural, crónico, evidente – e um caráter transitório. Isto porque se materializa em medidas social e politicamente polémicas, que geram antipatia e rejeição, mesmo por parte das mulheres, que nelas vislumbram paternalismo e menorização.

A aplicação da Lei da Paridade suscitou comentários inéditos sobre o mérito e a competência das candidatas além da sua escolha ao abrigo das disposições legais… As “quotas” favorecem a suspeição de que se está a privilegiar um membro de um grupo social apenas em virtude dessa pertença, e não porque seja a pessoa mais qualificada para o cargo.

Ora, sendo a primeira vez que por lei se impuseram quotas de género, deve perguntar-se pelas conclusões dessa avaliação de impacte, se a lei se deverá manter inalterada ou sofrer revisões e como se pode aprender com essa experiência na aplicação de mecanismos similares noutros setores, como o empresarial.

A título ilustrativo, nas últimas eleições legislativas, o número efetivo de mulheres eleitas atingiu o valor histórico de 33%, sendo que, da esquerda à direita, os partidos políticos elegeram mais de 30% de mandatos femininos (com exceção do PAN, com um deputado). Por outro lado, o atual Governo apresenta a mais elevada representação feminina de sempre, cerca de 33% (considerando ministras e secretárias de Estado).

Não há dúvidas de que a Lei da Paridade se repercutiu na feminização do campo político, mas seria importante distinguir o seu efeito de uma curva de crescimento da presença feminina que já anteriormente se detetava.

Além disso, as mulheres continuam arredadas das posições mais elevadas da hierarquia do poder. Na composição das listas para as mais recentes legislativas, constituíram apenas 20,7% de cabeças de lista. No Parlamento, estão em minoria na Mesa, na liderança dos grupos parlamentares e na presidência das comissões. Têm uma presença reduzida nos órgãos políticos executivos. No atual Governo de António Costa, apenas quatro mulheres figuram numa equipa de 17 ministros (23,5%). Uma franja de 7,5 dos presidentes de câmara são mulheres.

Por conseguinte, pergunta-se se faz sentido manter o valor de 33% como referente da paridade de género na política, uma vez que esse patamar quantitativo foi já alcançado. Por outro lado, talvez se justifique uma ação mais cirúrgica, operando diretamente sobre os principais desequilíbrios, nomeadamente nos cargos de liderança e de maior responsabilidade, para efetivamente começar a quebrar os glass ceilings na área política.

Parece-me que este trabalho de análise é fundamental, prevenindo-se a banalização legislativa e dignificando-se as ações previstas, compreendidas como necessárias para se continuar o caminho de construção da paridade de género na sociedade portuguesa.

 

Professora universitária e investigadora

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