"O verdadeiro objectivo dos 'planos de resgate' foi salvar os bancos"

Harald Schumann, jornalista alemão que está a realizar um documentário sobre a troika, explica ao PÚBLICO por que acusou o Governo português de "censura".

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Harald Schumann DR

Há uma semana, na conferência de imprensa de rotina do Conselho de Ministros, Luís Marques Guedes, o ministro da Presidência, foi interpelado, em inglês, por um jornalista que se queixava do silêncio do Governo português perante as suas perguntas. A imagem passou nas televisões. Harald Schumann, editor do diário berlinense Tagesspiegel, e autor do livro A Armadilha da Globalização esteve em Portugal a filmar um documentário para o canal Arte, sobre o efeito da troika nos países intervencionados.

É o seu segundo documentário depois da crise financeira. O primeiro chamou-se “Quando a Europa salva os bancos quem paga?”. Vista por seis milhões de europeus, esta investigação de Schumann pode ter causado má impressão nos governantes portugueses. Foi, pelo menos, isso que lhe disseram, para justificar o silêncio de Carlos Moedas, Maria Luís Albuquerque e Pedro Mota Soares…

O que se passou na conferência de imprensa?
Nós estávamos há várias semanas a pedir entrevistas à ministra das Finanças e ao ministro do Emprego, e também ao coordenador do programa de ajustamento, o secretário de Estado Carlos Moedas. Mas os nossos pedidos ou eram adiados ou nem sequer recebiam resposta. Quando a equipa de filmagens chegou e iniciámos a rodagem, na semana passada, foi-nos transmitido, por porta-vozes, que os ministros e o secretário de Estado não queriam ser entrevistados para o documentário. Por isso perguntei ao ministro Marques Guedes a que se devia esta recusa peremptória de colaborar com um filme que será difundido em, pelo menos, seis países europeus. O senhor Guedes apenas disse que não lhe cabia comentar as recusas dos colegas e que devíamos continuar a tentar.

E que razões vos deram para manter a recusa?
Oficialmente, disseram-nos que os governantes não queriam participar num documentário que só será exibido em Janeiro próximo e que, até lá, muitas coisas poderiam acontecer, tornando os seus depoimentos desactualizados. Como o que queríamos deles era uma avaliação do que aconteceu ao longo do programa de ajustamento, creio que estas razões não são credíveis. Nos bastidores, mais tarde, fomos informados de que a minha “má reputação” teria sido a razão fundamental para que recusassem qualquer entrevista.

Como é que interpreta isso?
Bom, só pode querer dizer que o facto de eu ser conhecido como um jornalista crítico, independente, me causou má reputação neste Governo. Infelizmente, isso confirma o problema básico de toda a operação da troika de credores na crise da zona Euro: O chamado ajustamento está organizado de uma forma opaca, por vezes arbitrária ou até ilegal. Os seus responsáveis sabem-no, e pretendem evitar perguntas críticas.

O seu documentário é sobre o efeito da troika. Onde tem filmado, além de Portugal?
Até agora estivemos na Grécia e em Portugal. Na próxima semana filmaremos na sede do FMI, em Washington. Mais tarde iremos à Irlanda e ao Chipre e, é claro, a Bruxelas e a Frankfurt, para entrevistar os responsáveis da Comissão Europeia e do BCE. 

Até agora, o que vos foi possível observar?
A ideia de resolver o problema da dívida através da austeridade falhou completamente. A dívida é agora ainda mais insustentável do que era, há três anos. Os programas são, também, extremamente enviezados. Todo o fardo é assumido pelos trabalhadores e pelos contribuintes normais, enquanto as elites privilegiadas, que conseguem evadir a sua riqueza através dos offshores, e que são as maiores responsáveis pela crise, até conseguem lucrar com os programas de ajustamento. Por exemplo, quando conseguem comprar activos valiosos ao Estado a preços de saldo.

Essa é, até agora, a vossa principal conclusão?
O “resgate” errado, que apenas salvou os investidores estrangeiros, principalmente alemães, de perderem nos maus investimentos que fizeram, mina a confiança nas instituições democráticas dos países afectados. Os Governos e os Parlamentos desses países parecem ser apenas marionetas nas mãos de desconhecidos, e não eleitos, burocratas estrangeiros. E, ou, de investidores.

O que mais o surpreendeu na situação portuguesa?
O facto de terem tido - em proporção - a maior manifestação de todos os países em crise, mas que não teve qualquer impacto… Se, na Alemanha, 10% da população saísse à rua para protestar, o que significaria uma manifestação de 8 milhões de pessoas, nenhum Governo sobreviveria a isso intacto.

Os cidadãos alemães estão conscientes do que se passa nos países da periferia?
Infelizmente, não. De modo nenhum. A maioria dos alemães acredita realmente que o seu Governo está a “ajudar” os gregos e os portugueses com “dinheiro dos contribuintes”.

O seu último filme tratava da crise financeira. O que concluiu? 
Que o verdadeiro objectivo dos “planos de resgate” foi salvar os bancos - alemães, franceses, ingleses - e os seus clientes ricos que fizeram investimentos estúpidos em bancos sobredimensionados, alimentados pelas bolhas imobiliárias, na Irlanda, na Espanha e em Portugal. Por esta razão, as dívidas dos bancos a credores privados foi reciclada em dívida dos Estados a credores oficiais. Em vez dos investidores, quem assumiu o risco foram os contribuintes de todos os Estados da Europa.      

Acredita que os responsáveis europeus (a Comissão, os Estados, o BCE) lamentarão, um dia, essa situação?
Tenho pouca esperança nisso. A experiência diz-nos que esses tecnocratas se escudam da dura realidade dos países mais pobres e dirão, sempre, que não tinham alternativa. 

Com estes documentários pretende criar algo de parecido com uma “opinião pública europeia”? 
Não. Não penso que possa “criar” uma opinião pública europeia. Mas, é claro, é possível que um dia possamos vir a ter um debate público à escala europeia. O principal obstáculo são os governos nacionais que nos mantêm enredados em pontos de vista estritamente nacionais, porque é aí que reside o seu poder. Mas pudemos ver nestas eleições europeias, que a anacrónica defesa de interesses nacionais, que não faz nenhum sentido economicamente, faz ricochete. Agora, em muitos países, estão em ascensão forças nacionalistas, que prometem ver-se livres desta Europa opaca e não-democrática. Esta receita, se posta em prática, tornar-nos-ia, a todos, mais pobres. Perderíamos todos os ganhos da divisão transnacional do trabalho. Mas é precisamente porque os nossos governos mantêm os cidadãos em iliteracia económica, para camuflar a verdade e os interesse que servem, que estes extremistas são bem sucedidos. Por isso, todos os que não queremos que a Europa regresse aos tempos sombrios do século passado temos de fazer o que estiver ao nosso alcance para criar um discurso público que ultrapasse as fronteiras nacionais. Ou o conseguimos, ou o projecto europeu irá ruir.

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