O “napalm” como arte dirigente

Do CDS não recordo outros tempos assim. Não me lembro de vaga tão grande de perseguição disciplinar.

I love the smell of napalm in the morning – é uma tirada inesquecível do Apocalypse Now. Para os cinéfilos, a frase de Robert Duvall ficou como emblema do prazer no esmagamento dos adversários. Foi o que me veio à memória perante o maremoto disciplinar para expulsão de militantes desencadeado a seguir às autárquicas.

O rasto ainda prossegue. A imprensa destacou 396 processos no PSD. Houve mais alguns. Mas registaram-se, ao menos, reacções. No CDS-PP, o número é proporcionado: entre 50 e 100, ninguém sabe ao certo. A diferença é não haver nem notícia, nem reacção. O modo é mais Bierknau: a repressão vem na companhia do silêncio.

Do PSD sei pouco e dos seus Estatutos ainda menos. Mas do CDS não recordo outros tempos assim. Não me lembro de vaga tão grande de perseguição disciplinar. Não está certo. Não gera coisa boa.

A norma estatutária para o fuzilamento disciplinar é a que sanciona a candidatura em listas opostas à do próprio partido. Dificilmente pode contestar-se tal norma. Mas o facto de existir não quer dizer que se desate a aplicá-la em automático, como furriel tiranete que lê o RDM sem sequer o interpretar: "Está escrito, meu coronel!" A pena de expulsão, sendo a mais grave de todas, deve funcionar, aliás, como um travão e não como estímulo. Os remédios são políticos e raramente disciplinares, porque também os problemas foram, na quase totalidade, políticos e não disciplinares.

Não conheço todos os casos que geraram tamanha fúria disciplinar dos poderes internos. Mas, em geral, as dissensões locais foram efeito de processos insuficientes, irregulares ou mesmo ilegítimos. E quase todas decorreram de alterações súbitas de orientação ou de escolhas políticas de última hora, não podendo censurar-se haver quem não tenha os rins ajeitados a todo o tipo de curvas e contra-curvas. Ou seja, são casos que devem inspirar… introspecção e não expulsão.

Aveiro concentra, no CDS-PP, a maior vaga de perseguições. Creio ter sido possível evitar uma debandada, como foi imediata tentação de muitos. Aguardam a decisão dos processos, se a houver. Mas dois históricos aveirenses, um da fundação do CDS, com quase 40 anos de partido (o Santos Costa), outro com cerca de 30 (o Jorge Nascimento) perderam a paciência e desfiliaram-se. Não está certo. O CDS deve-lhes muito. E ficou mais pobre.

Estas vagas de repressão servem também, habitualmente, de biombo circunstancial a ajustes de contas. É dos livros. E a prática confirma. Conheço dois casos, que são uma absoluta vergonha.

Um é também em Aveiro. O réu chama-se Diogo Soares Machado. Não foi candidato contra o partido, mas é como se tivesse sido. A acusação diz que não foi candidato, mas certamente pensou sê-lo!... Tem de voltar-se ao princípio para ter a certeza que se está no CDS. É verdade: passa-se mesmo no CDS. Depois, é acusado por pai, irmão e mulher terem sido candidatos. Lê-se e não se acredita. Enfim, foi logo pedida a suspensão preventiva com o fundamento – pasme-se! – de ser impedido de participar no plenário que iria apreciar… as autárquicas. A suspensão foi decretada sem sequer o ouvirem. Pum! Com uma particularidade adicional: pelo regulamento, é o relator que pode pedir a suspensão e o presidente jurisdicional decidi-la. A coisa foi um poucochinho mais caseira: a acusação, assumindo o papel da relatora, pediu-a logo; e a relatora decidiu-a, confundindo chapéu com o de presidente. Entretanto, esgotaram-se os prazos para a decisão final. Mas para quê maçar-nos, se uma “suspensão” ad eternum faz suficientemente a função?

O outro é na Batalha e mais gritante. O réu chama-se Horácio Moita Francisco, um dos mais antigos militantes do distrito. Aqui, não é por ter sido candidato contra o partido; é por o terem impedido, contra a vontade dos militantes, de ser o candidato do partido. Tudo é tão obsessivo e persecutório que roça as raias da doença. Em plenário, os militantes da Batalha escolheram-no como cabeça-de-lista – ele era, aliás, o vereador, posto que reconquistara para o CDS em 2009. Mas os dirigentes, distrital e nacionais, não apreciam a democracia interna. Toca de fazer gato-sapato do plenário concelhio e nomear à força quem os militantes não queriam.  Estes protestaram. Apresentaram reclamação – não foi respondida. Apresentaram participações disciplinares – não tiveram sequência. Reagiram, em desespero de causa, sem sucesso, junto dos tribunais. Às tantas, convocaram novo plenário para apreciar uma moção de censura ao presidente da concelhia, o favorito dos dirigentes: pela primeira vez na história do CDS e, creio, no mundo inteiro, a moção de censura teve unanimidade. A concelhia caiu duas vezes: além de o presidente ser censurado, todos os demais membros se demitiram contra aquele, provocando também a queda por falta de quórum. Perante isto, o que faz a direcção? Primeiro, uma espécie de genocídio administrativo: bloqueia a marcação de novas eleições para a concelhia, despreza os plenários, ficciona que a censura nunca existiu e marca as eleições para o Congresso em Leiria, e não na Batalha, onde sempre tiveram lugar. Segundo, instaura processos a militantes porque recorreram aos meios próprios do Estado de direito – isto é, são processados porque cumpriram os estatutos e as leis. Terceiro, faz decretar logo a “suspensão preventiva” sem audição prévia e impede, antes mesmo do trânsito em julgado da suspensão, o militante-alvo de ser candidato a delegado ao Congresso. Perseguição pura: pessoal, arbitrária e bem dirigida – o Direito feito macacada.

Mais do que as perseguições, choca-me a indiferença. Nunca consegui esquecer a frase que, estudante, li numa sala de audiências no Palácio da Justiça: “uma injustiça feita a alguém é uma ameaça contra todos.”

Choca este estado do Estado de direito na casa dos que governam: quando um “partido democrático” do “arco da governabilidade” está assim, é por dentro e pela base que começa a construção do Estado de Direito.

Deputado do CDS-PP

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