O Estado sem papel

Em Portugal, os polícias ainda podem fazer coisas que os professores universitários e os trabalhadores fiscais não conseguem.

O Estado português está quase falido. Um bom indicador da proximidade da falência é a falta de papel nos serviços públicos. Neste final do ano, já não há papel nas universidades e nas repartições de impostos, e só restam algumas folhas nas esquadras de polícia.

Eu sabia que, nas instituições de ensino superior, há já alguns meses que o papel estava em racionamento, em face do drástico aperto orçamental. Agora acabou. Os cursos e projectos que eram de papel e lápis passaram a ser só de lápis, aproveitando-se as costas do papel usado. O pior é que a maior parte dos cursos e projectos exige experiências laboratoriais. O ministro da Educação e Ciência, um renomado matemático, não sentirá porventura com suficiente acuidade as necessidades dos químicos, que, além de papel e lápis, precisam de vidros e reagentes, pelo que foi bastante oportuna a reacção dos reitores, em nome dos docentes e investigadores.

Recentemente, numa repartição de Finanças onde fui cumprir uma obrigação fiscal, fiquei a saber que lá também já não há papel. Quiseram não só ver o meu cartão de cidadão, um costume muito português, como também ficar com fotocópia dele, um outro costume muito nosso. Não sei por que razão os serviços do Estado querem, repetidamente, cópia de informação que, algures, lá têm e poderiam obter facilmente se acaso falassem uns com os outros. Mas, habituado que estou a passar o cartão a funcionários do Estado, autorizei o que estava à minha frente a fazer a respectiva cópia. Fiquei, porém, surpreso quando ouvi que eu é que tinha de entregar a cópia. Como contribuinte empenhado numa solução rápida, prontifiquei-me a ajudar do outro lado do balcão. Mas não, ali ninguém, nem eles nem eu, podia fotocopiar. Porquê? Porque, disseram-me, não havia papel. Ao faltar nos cofres o papel-moeda, estava a faltar nos serviços a moeda para o papel. Só então me apercebi das verdadeiras proporções da crise: as Finanças, que sempre tinham tido montes de papel, agora nem uma resma têm. Eu, que não tinha comigo nenhuma folha, ofereci-me, condoído, para ir buscar algum papel a minha casa (estaria a casa de banho deles também carente e não seria melhor trazer também um rolo?). Não, não queriam o meu papel. O meu papel seria ir ao quiosque da esquina pedir uma fotocópia. Queriam de mim um contributo, ainda que modesto, ao comércio local. Estava perante uma parceria público-privada.

Foi nessa altura que me surgiu, num clique, uma saída para a falta de papel nas Finanças. Simples, muito simples. As Finanças cobrariam as fotocópias aos contribuintes que ousassem aparecer com os documentos mas sem as cópias na mão. Como nas Finanças um cidadão deixa o couro e o cabelo, pagar uma mera folha A4 não seria para ele significativo. Todos juntos, pagaríamos a resma. Mas não, assim como não aceitaram o meu papel, também não quiseram saber do meu simplex. Uma vez que a negativa foi de um funcionário, que não funciona por míngua de papel, pode ser que a ministra de Estado e das Finanças aceite o pagamento das fotocópias como uma ajuda ao Estado depauperado. O Ministério das Finanças poderia até lançar um imposto do papel. Quer papel? Paga! As florestas agradeceriam.

Estou, claro, a partir do princípio de que as Finanças, viciadas como estão em papel, não podem passar sem ele. Mas o facto é que podem, se fizerem um conveniente desmame. Hoje em dia, há scanners e computadores baratos que podem fazer e guardar uma cópia de qualquer documento, prescindindo por completo do papel. Na repartição, podiam ter digitalizado o meu cartão e guardado os bits bem guardadinhos. Receio, contudo, que o nosso Estado continue a andar aos papéis, sendo moderno só na aparência. É certo que a Direcção-Geral dos Impostos envia cartas intimidativas pela Internet, mas não é menos certo que elas seguem amiúde para o destino errado. Há dias, recebi um email oficial, ameaçando-me por não ter feito a declaração do IRS, quando eu a tinha apresentado no prazo. Não perderam o papel, porque a declaração tinha sido electrónica, mas devem ter perdido os bits. Sugiro que, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os peçam à NSA norte-americana, que controla a circulação electrónica mundial.

Apesar do desgoverno, a falência do Estado ainda não está consumada. Pouco depois do episódio das Finanças, tive que ir à polícia apresentar um documento que não encontrei no porta-luvas do carro durante uma operação stop. O meu cartão de cidadão foi novamente solicitado para a inevitável fotocópia (a milésima cópia que o Estado fazia dele) e, aleluia, naquele lugar, havia fotocópias Scut, sem custos para o utilizador. Em Portugal, os polícias ainda podem fazer coisas que os professores universitários e os trabalhadores fiscais não conseguem. O Dr. Miguel Macedo ainda tem o papel que falta ao Doutor Crato e à Doutora Albuquerque.

Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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