Dobrar a esquina

Considerando o estado de calamidade e urgência em que o país se encontra, é dobrando a esquina que, ainda assim, podemos ter uma surpresa. E não se confunda dobrar a esquina com dobrar a espinha.

Se, como os vários sinais indicam a coligação a fazer-se de sonsa, como se tivesse aterrado agora na Portela de Sacavém e estivesse a fazer o check in para iniciar a campanha eleitoral, o Partido Socialista em busca da chave que dê sentido às suas propostas, porque no tempo que corre já só se olha de soslaio para quem faz um saco de promessas, e mais à esquerda quase tudo na mesma, quando era necessário quase tudo melhor a 5 de Outubro, além do hastear da bandeira na praça do município poder bem vir a acontecer, mesmo que se verifique a mudança de turno nos gabinetes ministeriais, e presumo que já haja quem tenha mandado fazer o fatinho para a solene ocasião, que, dada a desconfiança que por aí prolifera, os resultados, de tão parecidos, sejam principalmente a tradução de quem ganhou a guerra das feiras a das vaidades e a dos enchidos , dos cartazes, dos debates, das caneladas, dos presidenciáveis, enfim, desse universo de minudências que procura criar a ilusão de que desta vez é que é, a lição está aprendida, vamos passar ao capítulo em que um deles se declara.

E, no entanto, houve mais do que tempo, mais precisamente quatro anos, para não se chegar às vésperas na angústia do que vai acontecer no momento do penálti. Dirão uns que sem o estado de espírito deste momento nodal a democracia perdia todo o seu encanto. Pois bem, de encanto andamos quase todos carenciados, mas esta não será a altura para exercitar e exaltar as suas excelentes propriedades medicinais. Esta não é a hora para especularmos sobre a excentricidade das camisas do Varoufakis, e uma vez que a coligação andou de rédea solta a preparar minuciosamente as sobremesas que diariamente nos caem no prato, seja ao almoço, seja ao jantar, seja em canal aberto, seja em canal fechado, seja em onda média ou em FM, o que é que este lado faz ou anda a fazer, já como solução de recurso, para contrariar este arco-íris em que agora passámos a viver?

O que este lado tem obrigação de responder é à seguinte pergunta, e não vale a pena tergiversar com as diferenças programáticas e mais isto e mais aquilo, velho de 40 anos: é preferível que seja a direita a continuar a governar, consolidando um modelo de país de pobres-diabos e uma política cujo horizonte se esgota no próprio dia, ou é desejável firmar um compromisso em que, mesmo considerando o ponto de partida em 5 de Outubro, é possível, mesmo assim, começar a inverter o plano inclinado por onde estamos a escorregar, vai para quatro anos? “Sabereis dizer do nosso tempo/que buscámos, no caos, uma saída?”, questiona-nos, a propósito, o Assis Pacheco, apesar de já lá irem mais de 50 anos, ele que cuidava dos vivos com um zelo particular.

Ao contrário do argumentário que por vezes se proclama por aí, o aparelho de Estado é um instrumento de poder indispensável e fundamental para se promoverem as mudanças políticas, económicas e sociais que se desejam implementar. Sem ele, as manifestações, as greves, as petições, as opiniões contribuem para se criar e reforçar a consciência da necessidade de mudança, mas não produzem o efeito de um decreto publicado no Diário da República. E dada a anemia de que este lado vem dando mostras neste final de ciclo político, este seria o momento de dobrar a esquina político-partidária, exercitar a combinação que ainda não foi testada, acender o fósforo que ainda não foi riscado. Porque, vendo bem, considerando as variações de todos conhecidas, estamos lá quase todos na mesma barcaça, e para dar um rumo a estas vidas não é dedicando-nos à criação de bichos-da-seda que isto lá vai. Apesar de a calçada ser íngreme e o piso irregular, considerando o estado de calamidade e urgência em que o país se encontra, é dobrando a esquina qua ainda assim podemos ter uma surpresa. E não se confunda dobrar a esquina com dobrar a espinha.

Dirigente da Renovação Comunista

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