A chave

Este modelo de esquerda partidária há muito que está esgotado.

No fundo, o drama da esquerda partidária portuguesa é este: há uma metade que só pensa em governar; a outra metade só pensa em não governar.

A esquerda partidária que só pensa em governar acha que, para isso, tem de ser centrista. A esquerda que só pensa em não governar acha que, para isso, tem de ser extremista. A esquerda partidária portuguesa anda há décadas a fazer a espargata e pagou-se um preço considerável por isso. Uma parte grande da população portuguesa nunca esteve representada na governação, com tudo o que isso implica. Política não é só Parlamento, mundo sindical ou círculos de reflexão e debate. É poder, de forma decisiva, contribuir para o destino do país.

Porém, a esquerda partidária portuguesa, tradicionalmente estatista, parece sempre comprazer-se no paradoxo de entregar o Estado às mãos da direita. Assim chegámos a uma situação em que a maior parte das conquistas sociais do regime democrático, fortemente identitárias para toda a esquerda portuguesa — o Serviço Nacional de Saúde, a Segurança Social, a escola pública e a universidade para todos — se encontram em perigo e talvez já demasiado perto do ponto de não-retorno. Arriscamo-nos a chegar aos 48 anos do 25 de Abril, quando tivermos mais dias de democracia do que de ditadura, perdendo boa parte do que o 25 de Abril nos deu em termos sociais, e com uma sociedade em que a falta de representação política nos deixará à beira da deliquescência do próprio regime.

Mas o quadro partidário à esquerda não corresponde ao quadro social — e foi-se afastando cada vez mais deste. As diferenças cavadas entre as direções partidárias não existem, em grande medida, no eleitorado da esquerda. Não existe um extremo do eleitorado doutrinariamente anti-capitalista e marxista-leninista, de um lado, e um centro compassivo com o carreirismo e o clientelismo do poder, por outro. A maior parte dos eleitores de esquerda estão no meio, procurando pela realização de um país em que as desigualdades sejam combatidas e a pobreza erradicada, onde haja um acesso universal às provisões públicas, e onde uma economia mista e diversificada possa dar hipóteses justas de progresso social e pessoal aos portugueses. Pode haver diferenças e matizes numa miríade de temas, mas os alicerces comuns são estes e suficientemente amplos para possibilitar convergências que mudem a governação do país.

O problema é que o “meio da esquerda” nunca foi determinante em nenhum dos partidos estabelecidos. No PCP, os críticos foram sendo ciclicamente afastados. No PS, a “ala esquerda” foi por vezes tolerada, por vezes cooptada, mas quase sempre mantida à margem. E, no Bloco, de onde muitos (incluindo eu) esperaram ver resolver-se esta equação, os setores mais sociais-democratas e abertos ao diálogo foram sendo sucessivamente reprimidos, até à saída final.

Este modelo de esquerda partidária há muito que está esgotado. O desafio que se coloca é como suplantá-lo, e a chave é esta: precisamos agora de uma esquerda que, em vez de só querer governar ou só querer não governar, queira saber porquê governar e sobretudo para quê governar.

 

Sugerir correcção
Comentar