O Citius e o abuso do poder

Permitir que um dos três poderes – neste caso o legislativo – possa simultaneamente gerir, administrar e controlar um sistema informático com dados tão sensíveis como estes é, em última análise, abrir a porta ao totalitarismo

A importância social do Citius só tem paralelo com o processo de colocação de professores. Um e outro mexem com o país inteiro, ambos afectam a vida de milhões de pessoas. O Citius é uma plataforma informática de gestão da máquina da Justiça, a Bolsa de Colocação de Professores é um concurso também dependente da eficiência de um programa informático gerido pelo ministério da Educação. Curiosamente, sendo ambos, por si só, processos administrativos, acabam por funcionar como o espelho da capacidade política dos respectivos ministros. Isso acontece, também, porque o gigantismo dos dois ministérios – os maiores, a par do da Saúde – acaba por conferir um extraordinário grau de visibilidade a tudo o que por lá se passa. Para o bem, ou para o mal. Não é por acaso, que estas são das áreas mais desgastantes a nível governativo, o que explica o vai e vem de ministros nestas pastas. Sobretudo na Educação, onde o recorde de caras que não aqueceram o lugar já bateu de certeza todos os recordes.

Mas apesar dos aspectos que tornam (quase) simétricos os efeitos do funcionamento destes dois sistemas operativos, há uma particularidade no Citius que dá bem a medida da delicadeza da sua gestão: a natureza confidencial dos dados que circulam nas suas entranhas. Imagine-se a diversidade de processos judiciais, de investigações em curso, a amplitude de arguidos e testemunhas, a sensibilidade dos depoimentos. Imagine-se uma falha na segurança, uma estrada aberta para o acesso indevido a este material. Imagine-se como gente sem escrúpulos pode tirar partido das informações recolhidas… O Citius não se limita a mexer com as vidas das pessoas, uma falha no seu funcionamento pode arrasar reputações.

Há poucas semanas atrás, o congresso dos juízes abordou a questão. Uma magistrada denunciou o facto de a gestão de dados do Citius estar sob a alçada de um organismo dependente do Ministério da Justiça, quando a lei obriga, desde 2009, a que seja o Conselho Superior da Magistratura a cumprir esse papel. Percebe-se perfeitamente a preocupação dos juízes. A possibilidade de um Governo – qualquer Governo - dispor de um manancial de informação desta natureza é extremamente perigoso. Por um lado, porque como diz Maria José Costeira, secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, «esta situação deixa o poder judicial cativo do poder político» na medida em que sentem o peso de uma constante observação e avaliação das suas decisões. Por outro, porque há suspeitas fundadas sobre a violação constitucional do princípio da separação de poderes. Desde Montesquieu, com o seu decisivo contributo para a arquitectura dos modernos estados de Direito, que estes se definem justamente pela forma equilibrada como funcionam os três poderes – executivo, legislativo e judicial. Ora, permitir que um destes pilares, neste caso o legislativo, possa gerir, administrar e controlar  um sistema informático com dados tão sensíveis como estes, é abrir a porta ao abuso, à manipulação e, no extremo, ao totalitarismo.


 

  

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