A contingência e o tempo para o PS

Como articular a opção do pacto de regime com o PSD, com esta perspectiva de entendimento com uma nova formação situada à esquerda do PS?

À esquerda, à parte o histórico imobilismo do PCP, a turbulência parece ter-se instalado. Não é necessariamente uma má notícia.

 Pelo contrário, dos vários debates presentemente em curso poderão resultar transformações com significativos efeitos práticos. No PS, seja qual for o resultado final da contenda a decorrer, poderemos assistir a uma reconfiguração do modelo partidário se as primárias se revelarem bem sucedidas. Já a aparente desagregação do Bloco de Esquerda poderá conduzir ao surgimento de um novo movimento político dotado simultaneamente de capacidade de aglutinação de correntes de opinião inspiradas no marxismo crítico e vocacionado para entendimentos com o espaço social-democrata, representado naturalmente pelo Partido Socialista. Poderiam abrir-se, deste modo, novas perspectivas para uma vida política que se nos depara demasiado bloqueada.

No PS o que de mais relevante se passou nos últimos dias surgiu pela voz de António Costa e consistiu em duas afirmações que merecem ser devidamente analisadas: a entusiástica declaração de apoio a uma hipotética candidatura de António Guterres e a manifestação de uma disponibilidade para a celebração de um entendimento de fundo com o PSD, desde que este partido mudasse de liderança e de orientação. Guterres é, como sabemos, uma personalidade política doutrinariamente localizada entre a democracia cristã e o socialismo democrático, pouco propenso a radicalismos de qualquer espécie e muito respeitado nos sectores mais centristas da sociedade portuguesa. A sua candidatura abrirá espaço para o surgimento de outros candidatos oriundos dos sectores mais à esquerda que procurarão, enfatizando as suas divergências com Guterres, reclamar uma maior autenticidade ideológica na representação deste sector político. E assim sendo poderemos ter umas eleições presidenciais deveras interessantes no plano do confronto entre as várias esquerdas portuguesas. Guterres ganhará esse confronto e, muito provavelmente, será a seguir eleito Presidente da República. Ora, talvez não por acaso, António Costa defendeu ao mesmo tempo a vantagem de um Presidente da República mais interventivo e da celebração de um pacto de regime com o PSD. Parece óbvio que esse pacto de regime teria de ter como referência um verdadeiro programa social-democrata adaptado às presentes circunstâncias da realidade europeia. No fundo, nada de muito distante daquilo que Juncker apresentou como programa de acção para a futura Comissão Europeia. Tal passaria pela assumpção de compromissos rigorosos em matéria de consolidação orçamental progressiva, pela adopção de políticas conducentes ao reforço da competitividade da economia e pela aplicação, como contrapartida, de instrumentos propiciadores do crescimento, da criação de emprego e da estabilização do Estado Providência. Uma solução política desta natureza, de certa forma correspondente ao que está a ser levado a cabo neste momento em França e em Itália, poderia reforçar a capacidade negocial do Estado português junto das diversas instâncias europeias. Como se vê, o tão anatematizado “ bloco central “ pode ter curiosas virtualidades. Julgo, aliás, que António José Seguro nunca preconizou uma linha diferente desta e que muitas das suas atitudes, agora violentamente atacadas por alguns dos nossos mais brilhantes “jovens turcos” socialistas, se inseriam nesta corrente de pensamento. No meu caso deixei sempre clara a adesão a esta opção. O futuro dirá se tinha ou não razão.

Por seu lado, o que se está a passar mais à esquerda também se reveste de ampla importância. Ana Drago é, do meu ponto de vista, a mais interessante personalidade política situada à esquerda do Partido Socialista. Num certo sentido, ela é a herdeira do que poderia ter sido Francisco Louçã – tem uma forte cultura política, dispõe de inegáveis qualidades dialécticas e revela abertura para uma compreensão não estereotipada da realidade contemporânea. Pela sua própria idade não se encontra prisioneira de um lastro doutrinário e político inibidor de uma outra forma de representação do espaço em que se insere. Nessa perspectiva, associada a personalidades com fortíssima projecção pública oriundas da mesma área, poderá aspirar à construção de um interessante projecto político de natureza pós-marxista e pós social-democrata, sem abdicação desta dupla herança. Foi isso que os Verdes fizeram com sucesso na Alemanha. Um movimento desta natureza alteraria significativamente o quadro político no interior da esquerda portuguesa. Para melhor.

A interessante questão que se pode colocar é a seguinte: como articular a opção mais centrista, a do pacto de regime com o PSD, com esta perspectiva de entendimento com uma nova formação situada à esquerda do PS? A resposta remete para dois conceitos fundamentais no plano político: a contingência e o tempo. A contingência aponta para o plano da liberdade e da pluralidade das opções possíveis; o tempo confronta-nos com a caducidade de todas as soluções imagináveis. Daí que se deva reconhecer a enorme vantagem do crescimento das variáveis políticas equacionáveis. Como se pode constatar, alguns pequenos cultores de novas formas de dogmatismo no interior do PS podem estar condenados ao insucesso. Demasiado novos para a opção centrista, pouco úteis na opção mais à esquerda. Em política as coisas nunca são aquilo que parecem ser. Ainda bem.

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