O passado já não é o que nunca foi: Paris à Woody Allen
O leitor José Pedro Almeida revisita alguns dos lugares do filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen, que recentemente cumpriu 88 anos.
Quem conheça um pouco da obra do cineasta Woody Allen sabe que a visão edulcorada que transparece dos seus filmes nem sempre se coaduna com a realidade concreta dos locais onde são rodados: a título de exemplo, a Manhattan do seu celebrado filme homónimo, na verdade, é uma efabulação muito mais amena do que o abrasivo borough nova-iorquino a que corresponde. Além disso, desde que a sua filmografia derivou para outras latitudes, alguns críticos apontam-lhe um declínio no engenho criativo; mas, se as obras redundaram quase em meros postais turísticos, em certos casos, isso é mais um problema dos cinéfilos do que dos viajantes. E se este tépido Golpe de Sorte – ainda em exibição, nas salas de cinema – não inspira grande curiosidade, quanto aos seus filmes situados na capital francesa já é mais difícil resistir à tentação de ir em busca das paisagens que animam essa fantasia nostálgica e escapista que é Meia-noite em Paris, estreado há pouco mais de uma década.
Porém, o problema começa logo no alojamento. A menos que se tenha pais como os da noiva do protagonista – Gil Pender, interpretado pelo actor Owen Wilson –, pernoitar no luxuoso Le Bristol estará inacessível à maioria das carteiras portuguesas. Ainda assim, felizmente, nem todas as paragens são exclusivas de bolsos opulentos. Pelo contrário, por surpreendente que pareça, não é dispendioso jantar no restaurante Polidor, poiso habitual onde Hemingway, entre garfadas e copos, filosofava sobre como olhar a morte de frente, com bravura e dignidade, à semelhança dos caçadores de leões, em África; em compensação, dado o afluxo de clientes, é natural ficar-se entalado, à mesma mesa, entre dois casais de desconhecidos, caprichando nos extras vedados a quem opte pelo menu simples, de três pratos.
Mais acessível ainda, seguindo na direcção do Panthéon, nada como esticar as pernas até ao centro da trama: as escadinhas laterais da Église Saint-Étienne-du-Mont, onde passa, na rua adjacente, o misterioso carro que transporta o protagonista até aos anos 20 do século passado (por coincidência, enquanto descia as escadas, à procura do melhor enquadramento para a fotografia anexa, repicaram os sinos da igreja e, por um milésimo de segundo, tive um sobressalto que quem viu o filme compreenderá). Gorada a possibilidade do recuo a eras ancestrais, uma alternativa é calcorrear, a pé, as ruelas até à livraria Shakespeare and Company, cujo fundador, segundo reza a lenda (num dos livrinhos alusivos que folheei, entre os encontrões da turba), nem após muitas insistências consentiu fazer um cameo no filme, esquivando-se para os seus aposentos, no piso superior, sempre que a equipa de rodagem aparecia, a fim de que ninguém o encontrasse. Pessoalmente, foi onde concluí que o protagonista só considerava a cidade ainda mais bela sob a chuva porque nunca teve de esperar na fila, à mercê dos pingos, e de remexer no bengaleiro improvisado à procura do seu guarda-chuva, no meio de dezenas deles.
Excluindo outros sítios de pendor turístico (Tuileries, Montmartre) ou mais afastados do centro (Giverny, Versailles), não deve esquecer-se uma passagem pelo Maxim’s, onde Gil e Adriana desembocam, por sua vez, ao serem transportados para a Belle Époque (imediatamente antes de se cruzarem, no Moulin Rouge, com alguns vultos coevos). E eis que, atravessando a Place de la Concorde, já depois do Palais Bourbon e antes do Quai d’ Orsay, surge o grande final: a Pont Alexandre III, onde, perante os candeeiros a rebrilharem no pavimento húmido (ou isso já será a memória da minha própria experiência?), o enredo conhece um desenlace que não convém desvendar.
Parafraseando o aforismo de um povo que os nativos parisienses tendem a execrar, já sabíamos, metaforicamente, que o passado é um país estrangeiro. Em Meia-noite em Paris, Woody Allen viaja literalmente para o estrangeiro em busca do passado, para nos revelar que o passado, mais do que já não ser o que era, já não é o que nunca foi.
José Pedro Almeida