O direito da agricultura e ambiente e os incêndios

A floresta portuguesa arde e a classe política, em vez de ir calada para férias, prefere incendiar ainda mais o debate.

A floresta portuguesa arde e a classe política, em vez de ir calada para férias, prefere incendiar ainda mais o debate que se instalou sobre o porquê de tanto incêndio.

Até o Presidente da República, jurista de topo e político experiente, não resistiu em lançar uma mancheia de achas para a fogueira ao afirmar «há que punir em conformidade» e que, para além de toda a panóplia legal conhecida, das promessas e das preocupações manifestadas pelo governo, «se trate a sério da eficácia da justiça em relação aos eventuais responsáveis».

Menos sofisticada e mais contabilista, a ministra da Administração Interna sustentou «a hipótese de se intentarem acções de indeminização, de responsabilidade por danos.» Dito de outro modo, quer pôr os incendiários a pagar os prejuízos, como se de criminosos de salão se tratasse. E eu pergunto: em face do fogo na Ilha da Madeira e da impressionante área que já ardeu, quem, a não ser um verdadeiro multimilionário, é que poderá ressarcir o Estado e a sociedade dos enormes prejuízos causados? Nova pergunta: na sua enérgica gesticulação, estaria a ministra a aludir aos incendiários que pensam ou aos incendiários que executam?

Inútil referir o papel que uns e outros têm desempenhado na destruição de Portugal. Aproveito o ensejo para lembrar aos mais impetuosos e sedentos de justiça que, na longa e não despicienda cadeia alimentar que se esconde por detrás dos incêndios florestais, a mão que executa pertence por norma a indivíduos de baixo nível educacional, sem quaisquer qualificações profissionais, habitam miseravelmente em zonas rurais, consomem por norma álcool em abundância e costumam apresentar patologias do foro mental.

Como se vê, parece um retrato em tudo bem diferente de um madeireiro, de um investidor imobiliário hoteleiro, de uma multinacional de papel e celulose ou, fruto dos conturbados tempos que vivemos, do de uma organização terrorista, como já se vai ventilando em França.

Falando de aspectos puramente técnicos, direi que juristas há muitos, mas juristas que percebam de direito da agricultura e ambiente, não haverá assim tantos por aí. Bastará consultar os sites das sociedades de advogados para se ficar esclarecido. Além disso, nem as próprias faculdades se preocupam em estudar o direito da agricultura e ambiente. Mas afinal, perguntar-me-ão, o que é que tem esse ramo do direito a ver com incêndios? A resposta não é fácil, mas, em poucas linhas, direi que esse ramo do direito não protege exclusivamente nem o interesse público (direito público), nem o interesse privado (direito privado), antes protegendo interesses difusos, cuja efectividade não é exclusiva de um titular, mas sim de toda uma comunidade e de cada um dos seus membros. Baseia-se, entre outros, no princípio da responsabilização pelo dano ambiental.

Com toda a complexidade que envolve a problemática dos incêndios, não é difícil perceber que penas duras aplicadas aos seus executores não apagam nem evitam fogos. Se os evitassem, não existiam incendiários! A legislação penal já prevê penas que podem ir até aos doze anos pelo crime de fogo posto. Será que não chega?

O direito penal actua tardiamente, depois que o dano ocorreu, não trazendo nenhum benefício à floresta ardida. O incentivo da repressão penal acaba só por trazer consequências desastrosas para a natureza, servindo apenas para encobrir o que não se fez e o que, talvez, jamais venha a fazer-se.

O enfoque do assunto tem forçosamente de incidir na recuperação das áreas ardidas, no seu restauro, e não em transportar para o sistema prisional pessoas que precisam, de facto, de ser inseridas em programas de educação cívica associados a aulas práticas de recuperação do meio ambiente. Por outras palavras, ensinar por meio de acções individualizadas que apontem o caminho para uma relação de amor e identificação do perpetrador do dano com a natureza.

Falta mais e melhor educação ambiental no País. É um facto! Todos os dias se assiste a pequenas condutas susceptíveis de causar estragos ao meio ambiente, muitas das quais, apesar de individualmente insignificantes, quando somadas no seu conjunto, podem tornar-se altamente lesivas. Se alguém, ao passear numa mata, lançar uma garrafa de plástico por onde bebeu para o meio da vegetação (conduta insuficiente para a caracterização individual de um ilícito penal), tal acto é já por si só poluidor e, por conseguinte, reprovável. Mas quando garrafas de plástico são lançadas por vários passeantes na mesma mata, o mesmo acto, que não deixa de ser poluidor na mesma, já causará, sem qualquer sombra de dúvida, graves estragos ambientais.

O delito ambiental não se produz exclusivamente devido a uma conduta individual. Para se produzir dano num bem jurídico colectivo (como queimar uma floresta, por exemplo), um grande número de pessoas pode ter infringido normas jurídicas. Enumero como exemplo: a autarquia que não contratou o guarda-florestal; o proprietário rural que nos seus terrenos acumulou lenhas, sobras de exploração florestal ou agrícola e substâncias inflamáveis como, por exemplo, gasóleo. Como se vê, a incúria pode abranger muita gente e instituições públicas e privadas. É do conhecimento geral que, ano após ano, o planeta vai aquecendo, não admirando por isso que, no futuro, os incêndios passem a ser muito mais frequentes e dramáticos do que os actuais.

Identificadas muitas das razões que se escondem por detrás dos incêndios, só faltará porventura acrescentar que a responsabilidade ambiental não é pertença do direito penal, nem este, muito menos, dispõe de soluções mágicas para sarar feridas sociais. A solução, para além da vigilância, passará, em meu entender, por sanções administrativas e por uma efectiva educação ambiental. O resto são negócios pirotécnicos em que o país gasta 99 milhões de euros por ano.

O paradigma a mudar será o da responsabilização. Criminalizar, sim, o factor da ignição, seja ela criminosa ou acidental, mas não esquecer nunca as empresas, os empresários, os políticos, que beneficiam directa ou indirectamente da dita ignição. No fundo, é responsabilizar todos aqueles que verdadeiramente ganham com os incêndios florestais, e aos quais deve ser então imputada a tal responsabilidade civil de que falava a ministra pelo dano ambiental que causaram.

Sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados

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