O primeiro Natal pós-troika dos leitores do PÚBLICO

Desafiámos os nossos leitores a contarem como será a sua consoada. Aqui ficam os contributos que recebemos, na íntegra.

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Fábio Teixeira

A crise afectou (e afecta) os portugueses de várias formas e o Natal não foge à regra. O Natal de 2014 será o primeiro depois da saída da troika, mas será que isso o torna diferente dos últimos anos? Desafiámos os nossos leitores a contarem como será a sua consoada. Aqui ficam os contributos que recebemos, na íntegra.

Manuel Montemor, 60 anos, desempregado, Albufeira
“No primeiro Natal pós-troika ainda não vou conseguir comprar o “público”, o meu jornal diário preferido que deixei de poder ler na íntegra desde há cerca de 4 anos e tudo indica, não será para breve que terei esse gosto. No primeiro Natal pós-troika, viverei o pior Natal da minha vida por continuar sem conseguir trabalho aos 60 anos e viver do subsídio social de desemprego que apenas me dá para pagar o alojamento (in extremes). Subsistindo com a alimentação que recebo na Santa Casa da Misericórdia de Albufeira a troca de algum trabalho como voluntário. No primeiro Natal pós-troika continuo sem poder satisfazer as minhas necessidades mais básicas ao nível da saúde como ter acesso a uma consulta de oftalmologia e de estomatologia para não referir outras. No primeiro Natal pós-troika, pela primeira vez, não poderei pagar uma prenda para a minha filha de 9 anos e possivelmente passar com ela uma parte das suas férias de Natal por carência de condições económicas que me o permitam. No primeiro Natal pós-troika a minha vida não faz sentido!”

Augusto Antunes, 52 anos, director comercial, Viseu
“O Natal na Beira Alta é tradicionalmente uma quadra passada junto da família e amigos. Este de 2014 não será diferente. O permanente calor humano à volta de uma bela fogueira. Na verdade, não faltarão as típicas iguarias da época natalícia: bacalhau bem regado e muitos doces! Os frutos secos, sempre! Todavia, acima de tudo, será um Natal de grande convívio e amizade fraterna. Não se perspectiva um Natal diferente dos últimos anos. Haverá menos prendas por razões de maior racionalidade e contenção, mas nem tanto por necessidade. Os anos de crise ensinaram que os exageros pagam-se caro, mas esta família nunca viveu acima das suas possibilidades! Há alguma tristeza com o caminho do país rumo a muita incerteza e paira no ar algum inconformismo entre a classe mais jovem da família: o Hugo irá para Inglaterra em Janeiro? A Carolina – novel médica, acabará a exercer na Suíça? A Leonor – estudante de Gestão na Nova tem já o intercâmbio internacional previsto para Londres–Canadá… acabará por lá ficar!? Este país não é para velhos, será para os novos? O Natal é também um tempo de renovação, paz e concórdia…os portugueses mereciam um tempo de elevada esperança. Mas quem tem valia para a proporcionar?”

Vítor Pereira, 51 anos, funcionário público, Gaia
“Não vai haver diferença significativa. Tanto eu como a minha família mais próxima tivemos sempre uma atitude prudente no que respeita a despesas, e por isso pudemos adaptar-nos à redução de rendimentos sofrida sem dificuldade”.

Teresa Soares, 63 anos, reformada, Aveiro
“O país está mais pobre. Mais triste, portanto. Os pobres são cada vez mais. A classe média aproxima-se da pobreza. Pertencendo eu a esta última e sentindo na pele e no bolso os cortes sucessivos que fizeram à minha reforma - quando eu a merecia por inteiro, pois trabalhei e descontei para tal, não tendo sabido o Estado administrar o dinheiro daqueles que descontaram para a mesma! - o meu Natal vai ser seguramente mais atrofiado. Afasto-me das lojas. Não sinto alegria própria dum tempo de festa. A culpa não é só e principalmente da troika. Mais do que tudo, a culpa é dos governantes deste país - estes e os do passado. Deram cabo do país, da democracia e da qualidade de vida das pessoas. Que já não vivem. Apenas sobrevivem. E mal. Exceptuam-se aqueles que são ricos e se tornaram ricos - uma minoria. E sempre à custa dos pobres, a maioria que, para passar um Natal com tudo o que será necessário, terá de se endividar - em Janeiro se verá… Com troika ou sem ela, o país está mais raquítico. Só não está na cabeça do poder, que o quer manter a todo o custo, enganando aqueles que se deixam enganar.”

Rita Castro, 30 anos, professora
“O meu Natal será, apesar de tudo, mais alegre. Decidimos juntar a família toda, mas mesmo toda (vai ser uma confusão), os meus primos já estão encarregues de formar uma banda. Vamos fazer o jogo do quem é quem humano. Vamos mostrar um vídeo do ano da família. Vamos fazer uma caminhada no dia 25. Porque já não importa o desembrulhar dos presentes (não há dinheiro). A comida será a que se planta no quintal (não há dinheiro para o bacalhau). Mas antevejo que será o Natal mais divertido e que vamos realmente estar uns com os outros, do que a seca do ano passado, com choradeira dos mais novos porque não era o presente que queriam receber.”

Ivânia Alves, 31 anos, Neurologista, Santa Maria Feira
“Este que é o primeiro Natal pós-troika é o último Natal como residente em Portugal. A crise e os seus efeitos e medidas devastadoras deixaram não só marcas económicas, mas também um sentimento de descrença e a certeza de que, mesmo a troika saindo, o país não vai recuperar na próxima década. As medidas nas áreas sociais, saúde e educação repercutir-se-ão negativamente ao longo das próximas décadas em todos os escalões etários. Este ano as prendas serão menores em valor e maiores em intenção (já que o subsídio em duodécimos para "tapar" os buracos deixados por outros cortes) não permitem grandes excentricidades e a passagem de ano será certamente caseira já que o abastado salário de 8 euros/hora não permite efectuar cruzeiros pelas ilhas gregas.  Além do bacalhau, das rabanadas e outros doces e chocolates (comida felizmente ainda não falta), este Natal sabe-me, à minha família e amigos, a despedida. Uma despedida que eu sei e eles suspeitam ser para muitos anos ou definitiva. E daqui a 10 anos, como será o Natal pós-troika? Quando a massa crítica estiver cá só de visita? Quando a produção de ideias for feita no exterior? Ninguém sabe... talvez melhor, porque a troika não estará cá!”

Diana Isabel Leite, 34 anos, professora, Lewisham, Inglaterra
“Com o subsídio de desemprego a acabar e sem trabalho para onde me virar, tomei a muito difícil decisão de emigrar! A infelicidade dos meus pais e amigos próximos, contrastou com a minha vontade de ir à procura de uma vida, de um emprego, de um rumo, de um FUTURO! Trouxe a esperança no bolso e a saudade no coração! Este Natal vai ser mais triste, sim... Sozinha, num país diferente, com pessoas que desconheço, mas que me acolheram de braços abertos. É uma família portuguesa, pois com certeza! O meu primeiro Natal sem a minha família, que tanto Amo, Adoro e Quero, e lágrimas escorrem pela minha face, teimam em cair, mesmo quando me esforço por não sentir! O coração sofre e aperta... perdem-se as palavras... e sinto... saudade, tanta, tanta! Ir e não voltar. Que decisão esta fui tomar! Do tanto que tinha, fiquei sem nada a não ser este sentimento pós-troika. Esta Crise que me levou para Longe! Uma família unida, desunida pela crise. Mas a Esperança, essa que me guiou, está mais VIVA do que nunca! Como um raio de luz, uma faísca! E sei. No meu íntimo sei, que vai tudo correr bem e que tudo vai valer a pena. Um Feliz e Santo Natal para todos.”

Ana Cristina Neto, consultora em formação profissional, 50 anos, Lisboa
“Até agora a família reunia-se em casa dos meus pais em Tavira, sendo que 50% da família vinha de Saint-Etienne, França, quando conseguiam vir. No Natal  2014, sendo eu a única que ficou em Portugal, a família vai reunir toda em França. A minha irmã é médica,  funcionária pública até Agosto último, demitiu-se, emigrou com toda a família (marido e três filhos)  e abriu um consultório em Saint-Etienne. Grande mudança na minha compra de prendas: comprei todas as prendas na Amazon, com entrega em Saint-Etienne. Poupei no custo do transporte; o bolo-rei do Califa mantém o lugar na mesa mas é capaz de chegar meio desajeitado devido à viagem no porão.”

Laura Vieira, advogada e empresária, 45 anos
“Menos & Resignação. Menos de tudo. É o que me ocorre após este marco duro que foi a Troika. Menos troca de presentes, menos brilho, menos brinquedos, menos casa quentinha que a electricidade é caríssima. Todos os anos um pouco menos. Os miúdos já não contestam. Já conhecem o argumento, ouvem-no demasiadas vezes. Menos esperança. Agora percebemos que foi definitivo. Antes acreditámos que era apenas uma tempestade, que iria voltar o céu limpo, que voltaríamos a viver com qualidade de vida sem sermos constantemente assaltados por mais e mais reduções com mais e mais impostos. Menos para sempre. Menos para toda a família, menos futuro para os nossos três filhos. A troika foi embora e ficámos com menos. Menos. Para sempre menos. Resignação. Aceitação. É a novidade do Natal pôs-Troika. Percebemos a definitividade deste menos. Não podemos viver contrariados permanentemente. Afinal só nos é permitido viver desta vez. Então vamos tentar viver aceitando a mudança. Com menos mas com mais aceitação. Somos asfixiados em impostos, termos uma família de três filhos afigurou-se indiferente aos últimos governantes. Afinal no futuro para que servem as crianças? Como viveremos numa sociedade com tão poucos jovens e tão envelhecida? Que importa isso agora? Não se consegue dar a verdadeira importância ao ALTRUÍSMO que é ter tido filhos. Três filhos. Já quase não viajamos, já quase não comemos fora mas já aceitámos. Guardemos antes a memória de outros tempos em que nós nos podíamos comparar um pouco com alguns outros países da Europa. Como um Natal pós-guerra? Não. Num Natal pós Guerra há mais faltas mas mais esperança no futuro! Natal pós-Troika: menos & mais resignação!”

Lucinda Coutinho Duarte, socióloga, 65 anos
“Meninos, isto do Natal já não é o que era. Longe e perdidos na bruma ficam os Natais em que ousava sonhar com surpresas - ainda que insignificantes, sempre haveria uma novidade, uma sensação de felicidade perante um evento tão singular que todos os anos se repete e nos confronta com a nossa própria realidade. Sim, porque a partir de agora tenho que me contentar com a “imitação” do que antes eram as ceias de Consoada, recorrendo com imaginação redobrada a compras nos supermercados mais económicos e aos enfeites comprados à socapa na Loja do Chinês.

A ceia do Consoada não vai ter o mesmo fulgor de outros tempos, quando usava com prazer os melhores talheres de prata, as louças da Vista Alegre e as toalhas de renda antiga, para embelezar uma noite familiar tão especial. Agora tudo tem que ser contabilizado, repensado ao detalhe para não ultrapassar o plafond que a troika nos impôs. Longe vão os tempos da mesa farta, com tudo o que havia de bom no mercado: bom bacalhau, bom vinho, boas nozes, boas couves portuguesas, bom polvo, bom ananás, bom bolo-rei, boas sobremesas natalícias, bom wiskey, boas nozes e romãs, bom vinho do Porto, bom foie-gras, bom peru recheado com castanhas, bom gelado, bons chocolates, etc, etc. Longe vão os tempos das toilletes especiais. Agora, nem vontade tenho de usar algo mais requintado, pois não quero parecer excessiva aos olhos dos que me rodeiam e atravessam dificuldades ainda maiores do que as minhas.

Agora a família é a mesma, mas tudo se alterou. Até a disposição para o convívio familiar e o rebuliço da abertura das prendas é levado ao mínimo dos mínimos – há desempregados na família, outros em risco de o ficarem com o descalabro da banca e empresas afins, logo, há olhares murchos e falta de esperança em melhores dias, semblantes tristes, rostos cansados, rostos fechados. Que mais posso dizer sobre o Natal pós troika?  Olhem, é uma grande seca e a única coisa que vale a pena (ainda) é a família, que boa ou má, feliz ou infeliz - é a nossa família. E isso a troika nunca nos tirará. Mesmo que os ventos e os sistemas financeiros e políticos em nos embrulharam neste e possivelmente nos anos vindouros nos sejam adversos!”

Margarida T.
“Neste Natal de 2014, apesar das novas tendências virtuais, tentarei manter a tradição: unir e unir-me à família. Entre os presentes, espero poder comprar com o meu subsídio de natal um livrinho muito pequenininho com uma grande lição para oferecer aos mais novos: O triunfo dos porcos de George Orwell. À minha querida mãe vou oferecer um abraço muito apertado de carinho sem medida e vou ainda agradecer-lhe tudo o que me deu embrulhado num amor profundo. Ao meu pai que está longe vou enviar-lhe também um imenso abraço de carinho e agradecer-lhe por me ter proporcionado tantos natais mágicos, recheados de cor e de viagens em família. Nos dias 24 e 25 de Dezembro, com o auxílio do Skype, refundarei uma mesa global para poder unir Continentes e partilhar do espírito natalício entre as bolinhas coloridas que guardo todos os anos no sótão do meu palácio encantado. Mas o meu Natal não será, de forma nenhuma, o Natal pós-troika. 

O meu Natal de 2014 será o natal de Passos e onde o Coelho não tem nem nunca terá tradição. Sou portuguesa de gema, nascida numa aldeia onde o Banco era o senhor que geria as economias do pobre que, pobre coitado, tinha nascido com um estigma genético que o impedia de aprender a ler e a contar correctamente em situações da vida prática e assisti em pequena às peripécias de Abril. Lembro-me que depois de um dia muito longo e muito cinzento veio um dia cheio de sol que levou todas as pessoas para a rua e lembro-me dessa alegria e de perguntar à minha mãe se já era Natal. Na altura, Natal escrevia-se com letra maiúscula.

Hoje, Natal escreve-se com letra minúscula, mas eu e a minha família combinámos continuar a celebrar o natal algures, à lareira, num refúgio da invasão pornográfica que tomou conta do país de há oito anos para cá! Nisto fazemos bem questão! Não teremos bifes à mesa, mas não faltará o bacalhau do Modelo Continente e o peru do Intermarché ou do Pingo Doce. No Ano Novo, à imagem do que já ocorre desde que me cortaram brutal e violentamente o salário e, pior, me afundaram em impostos, não comerei cabrito, não me deliciarei com o bom marisco comprado nas docas e também não irei de férias. Aliás, férias é uma coisa cada vez mais longínqua pois, tal como vossas excelências sentiriam no meu lugar, o campismo é bem quando podemos optar ou quando não provámos bifes. E no campismo parece que se comem mais entremeadas e salsichas gordas que os médicos desaconselham por provocarem artrite reumatóide e aceleração de problemas neuronais.

Assim, terei um natal feliz, sorrindo para a família e oferecendo-lhe o que de melhor posso oferecer, com o sentimento de vertigem sobre o que me espera no trabalho, na saúde e nos meus projectos de vida adiados e olhando para os meus familiares como uma personagem de olhos abertos para um horizonte cheio de cinzas.

Poderia escrever-vos uma cartinha mais decorosa. Confesso que estou sem tempo. Ganho tão pouco, mas o que me falta é tempo pois o meu patrão lembrou-se de me cortar o salário e enchê-lo em impostos, de forma brutal, violenta e escandalosa como já fiz entender, e aumentou-me o horário de trabalho, tudo isto violando direitos humanos. Só não tenho é dinheiro para poder recorrer ao Tribunal dos Direitos Humanos. Como tal, fico por aqui, esperando ter satisfeito a vossa curiosidade."

António Brandão Santos, 51 anos, funcionário público
“O meu Natal pós troika vai ser igual. Desde que este governo tomou posse eu e a minha mulher, ambos funcionários públicos, temos corte de 500€ por mês. Ficámos sem seis subsídios, e o de Natal diluído não se dá por nada porque as despesas aumentam. Tenho 51 anos e a minha mulher 57. Nunca na história da democracia portuguesa me lembro de um governo assim. Estou a ganhar o que ganhava em 2001. Tiraram-me a dignidade. Parece que os funcionários públicos e os pensionistas são os responsáveis pela crise do país. Os políticos sim, é que irão ter um grande Natal… como sempre. Deviam se governar como o povo. Natal qual Natal? Nem têm consciência do estado em que puseram o país, dos que atiraram para a miséria…”

Cidália Santos, funcionária pública
“Pela primeira vez desde que me lembro, não vou oferecer prendas, pois o meu subsídio de Natal foi pago em 12 partes pelas quais não me apercebi, pois vieram colmatar o brutal corte no vencimento. O meu marido trabalha na noite de Natal, não podendo deslocar-se para passar o Natal fora, por isso o Natal terá menos alegrias e surpresas do que em anos anteriores.”

Rosário Colaço, 51 anos, reverificadora assessora, Lisboa
"A paz nocturna percorre o trilho lento de um amanhecer. Os primeiros vestígios de sol debruçam-se, tímidos e delgados, sobre um recorte velado de telhados. É quando o despertador se ocupa das primeiras sonoridades àquela esperada hora da alvorada. Com a mesma insistência de todos os dias. E a quietude da noite cede gradualmente lugar ao nascer dos sons, das cores e dessa lânguida aurora que, por fim, regressa do horizonte, progredindo de luz e sustento a par com o tempo.

Abro os olhos com a conhecida vontade de logo os fechar. Seguro, com o olhar, um sinal perdido na penumbra das paredes sem ainda nada ver de muito definido. Ao meu lado, ele dorme, suplicando, em silêncio, mais um tempo de repouso. E a inércia, enroscada ao meu corpo atordoado, abre as janelas de sempre para mais um dia que se ergue nos mesmos contornos. Assalta-me aquela exacta ânsia de um momento de autenticidade, com novos traçados, sem vãs diligências, mas resigno-me à imposição de um sistema que se ampliou rígido e grisalho para nunca se ausentar.

Do meu quarto, avisto esta cidade que germina odores adormecidos. Ela chama, com reduzidas forças, os meus gestos iguais, envolvendo-me com uma pressa de mesmas rotinas. No ar húmido, estima-se o vaivém de transportes martirizados de memórias que conduzem pessoas aos mesmos destinos, aos mesmos rumores de um quotidiano indiferente.

Tudo parece pulsar desânimo. A anestesia pulverizou aquelas árvores na vereda de uma encosta rumo às alturas. Vestem-se de luz artificial para um Natal que se quer luminoso mas pouco alumiam as suas gentes. Também estas não brilham. Dissipam angústias em meios sorrisos contrafeitos, contrastando com aquela roupagem excessiva que às árvores se destinou num preceito fixo e ilógico.

É ainda Novembro. O Natal está à porta sem entrar, com convicção, em casa alguma. Um fenómeno chamado crise percorreu os últimos tempos com o frio cortante deste inverno. Não é apenas uma crise económica e passageira que se aborda, diariamente, com naturalidade mórbida em todas as esquinas. É uma crise que se alastra, galopante, a outros domínios e ameaça perigosamente os corações humanos. Fá-los diminuir. E mais afastadas se tornam aquelas alturas, isentas de voos que as preencham. Mais pardos se mostram os meios sorrisos e todos os Natais.

A crise abateu parte de nós. A crise abateu um todo de nós. Vejo-o hoje, nitidamente, no alto destas janelas, no rosto alheio das pessoas desavindas no encalço desses transportes que as baloiçam de esmorecimentos, nessas árvores ornamentadas de restos de seiva moribunda…

Certifico que o mundo se abreviou nas suas fronteiras, movido por um medo enfermo de investimentos sem triunfos ou de um dificultar o que difícil é. Constato que tudo é reduzido nas suas capacidades. Deixou de haver lugar a um querer e a um criar sem os terríveis cordões ditadores que ordenam além de uma austeridade. A gravidade ultrapassou o sobressalto matemático de uma economia forçosa porque a crise entrou no subconsciente de um povo, desvirtua qualquer celebração e asfixia desejos e acções, ou tudo o que impulsionaria o mundo a crescer harmoniosamente.

A pergunta tomba, então, oportuna, nessa mesma reflexão: onde paira o livre e pertinente Natal de tempos distantes, em que o sorriso dos homens era inteiro e não repartido entre agonias, cinismo e as poucas expectativas no mundo? Despertei, definitivamente, dessa inércia matinal. Cobicei o poder supremo de inverter esta realidade indigente que desloca homens impassíveis num lugar sem aspirações. No retrógrado desfolhar dos dias, apoderou-se da minha vontade uma força imprevista que há muito se encontrava apartada.

Finalmente, abandonei do meu corpo entorpecido o véu da indiferença que me fizera apagar todas as melodias da noite e a claridade, a brandura e o aroma revigorante de uma manhã. O meu ser, quase vencido nas próprias cinzas, recuperou uma regeneradora aparição de possíveis, expandindo-se de sonhos.

Hoje tornei a acreditar.

Hoje tornei a acreditar, mesmo compreendendo, com maior clareza, que as razões que levaram à crise são orquestrações bizarras cujos comandos parecem perpetuar-se num desencorajador efeito dominó.

Hoje tornei a acreditar, mesmo alcançando, com maior lucidez, que as consequências de políticas não sustentadas e de uma troika inflexível são devastadoras, que uma crise generalizada se infiltrou pesadamente em todas as partículas existentes desta atmosfera, tornando-a abafada e vulnerável.

Mas, sobretudo, hoje quero acreditar que a realidade que nos castiga, assente em tantas condições adversas, também pode engrandecer-nos.

Acarinhei esta premissa. Dei-lhe guarida. O espaço que agora ocupo, instantes antes obscurecido de um marasmo, preenche-se dessa luz gradual trazida do horizonte longínquo. Atravessando estas janelas, penetrando profundamente no meu ser, um absoluto luminoso da manhã entrega-me uma definida filosofia do Natal, o sentido de um querer que ultrapassa, largamente, os ditames desta quadra. Ou apenas a fé na falência de um ciclo que se substitui em gritante emergência e que urge, a todo o momento, alimentar.

Traço, com a voz aumentada e confiante, um ambicioso empreendimento: “Em Dezembro teremos uma árvore diferente.”

Ele finalmente acorda sem verdadeiramente acordar. Olha-me nos seus olhos imensos e escuros, claríssimos a mostrar espanto, intuindo na minha frase um fundamento superior.

Entrego-lhe um sorriso reparador com mais uma razão: “Uma árvore diferente é também um Natal diferente, uma eleição de vida.”

Aquele rosto ventila nova interrogação, ainda com recentes sobejos de sonolência.

Esclareço, num crescendo de emoções, animada pela metamorfose que, dentro de mim, se opera: “Desta vez, não nos confinaremos à pobreza de um pinheiro dispendioso. Nem tão-pouco, a uma sua réplica eivada de consumismos exacerbados ou infundadas obrigações.”

Ele atalha, incrédulo, preso que é às tradições natalícias: “ Mas…acaso, não teremos uma simples árvore de Natal?”

Sem pressa, prossigo a exposição iniciada: “Teremos uma árvore, simples sem o ser. Uma árvore reciclada com uma tónica distinta que envolverá uma participação universal. Deste modo, da sua construção não depende, apenas, o núcleo restrito desta família mas também a de contribuintes espalhados pelos vários cantos do mundo, incluindo amigos e desconhecidos. Até mesmo, civilizações remotas e desprezadas. Seres de todas as nacionalidades, etnias e religiões. Com ou sem deficiência. Seres de qualquer aparência, estatuto social, económico ou cultural integrarão este empreendimento que se quer criador e inclusivo.”

Ele atira, a revelar prováveis sinais de entusiasmado: “Mas será uma árvore desmesurada! E que espécie de enfeites terá?”

Anoto no pensamento aquela ponderação, respondendo à questão: “É uma árvore transformista. A sua forma e dimensão dependerão do número de colaboradores e das suas ideias. Os tradicionais enfeites serão, decididamente, abolidos. Pretendem-se enfeites inteiramente originais, fabricados pelas mãos dos vários participantes e, de preferência, com materiais que seriam, em princípio, desperdiçados.”

Ele acrescenta: “Poderemos, então, falar de uma árvore ecológica!” E um sorriso subtilmente trocista esboça um remate que não deixo escapar.

“Nesta árvore, de arquitectura sustentável, recorre-se, também, à economia dos materiais. Tudo nela transpira simbologia com concepções tendentes a evitar os esbanjamentos e a superficialidade das acções quotidianas, sugerindo-se um equilíbrio de vida interior duradouro, evidenciando-se novas nuances de cor, brilho e fantasia.”

Ele não deixa de lançar questões essenciais: “ E quanto aos presentes, como faríamos?”

Sinto que o projecto ganha forma à medida que nele aprofundo detalhes: “Isso é algo que seguirá a mesma linha de simbologia. Teremos pequenas caixas que poderão ser decoradas pelos próprios intervenientes, dando-lhes estes um cunho pessoal, e que contêm o mais representativo presente de Natal - uma folha-cartão, onde cada um registará o Natal por si idealizado, bem como os seus próprios desejos e objectivos para todos os dias do ano, sem esquecer, pelo menos, uma “proposta anticrise”. Basicamente, as ideias veiculadas nestes cartões artesanais pretendem contrariar o individualismo, resistir às carências natas de uma crise que fomos acomodando sem nunca contrariar, e banir a opacidade dessa letargia depressiva que nos reduz a cegos autómatos. Serão cartões interactivos, uma vez que projectam mais-valias nos outros, apelando ao seu próprio tributo no propósito de cada um. Em Dezembro teremos uma árvore diferente, uma árvore emblemática, um marco verdadeiramente sagrado.”

Os seus olhos despertam num sorriso duvidoso.

A minha filha acorda também, contagiada com todo aquele meu entusiamo inédito, e vejo-me naturalmente empenhada a traduzir-lhe a ideia genérica do projecto numa linguagem acessível à sua idade.

Enlaçada às minhas pernas, estendidos depois os braços a pedir um afago maternal, perguntas e conclusões caldeiam-se com a espontaneidade feliz dessa sua índole infantil: “Posso enfeitar a árvore com as pedrinhas e as flores brancas do jardim? E posso trazer a Mariana? Ela tem muitas ideias. Não precisamos de gastar dinheiro? Podemos trazer aquela velhinha que todos os dias pede moedas na estação? A nossa árvore será tão bonita, mamã, e o nosso Natal também!” Tinha guardado, rapidamente, a ideia fundamental. Porque as crianças absorvem facilmente as verdadeiras intenções, aquelas que se nos libertam do íntimo e se revertem eloquentes.

Mas o meu marido olha-me ainda espantado, como se me visse, de repente, transformada num ser alienígena lendo uma partitura de lirismos, oriunda de humanidades excêntricas. No seu mundo masculino e realista, mais do que boas intenções do íntimo, interessa-lhe o lado prático das coisas: “Como irás angariar essa imensidão de gente que desconheces?”

Continuo, agilizando a explanação: “ Abordarei pessoas na rua, no café…usarei o correio, o meu sorriso, o meu encanto… Sorrio. A Internet será, também, uma ponte preciosa. Se o é para actos banais, porque não agora para este que regenera valores esquecidos?”

Há decisões irreversíveis. Há decisões que não têm medida. Porque crescem ao lado da alma.

É ainda Novembro. O Natal não chegou mas já empurra barreiras. Cresce, poderoso, redentor de paz e fraternidades, reforçado por uma Fé maior e uníssona. Nele, conserva-se este pinheiro resistente que sobrevive para além de um dia de Reis, simbolizando o advento da renovação, de vontades não cortadas que se ramificam livremente do seu tronco largo e lenhoso.

O dia de acção de graças prevê a estrela ponteira rumo a todos os horizontes e, ainda, estrelas maleáveis de algodão e muito amor, generosos solstícios de inverno e de verão e sempre este pinheiro, cujos ramos se desembrulham de eternos ornamentos espiritais, fazendo-se crescer numa troca ilimitada de ofertas, ou tão simplesmente, de âmagos partilhados e diversos.

À minha frente, sinto, antecipadamente, o coração crescente da nossa filha. Lê-nos um seu cartão chamado feliz, feito de uma esperança inocente, escrito naquela caligrafia pouco certa mas certeira. A voz ainda titubeante no encontro das palavras, mas dançante num mar semântico de magia e de verdade.

Neste Natal comemoramos não apenas um nascimento.

À meia-luz de uma consoada, partilhamos as luzes do espírito, uma ceia nascida daquilo que existe sem excessos, um excessivo bem-querer abençoado. A mesa faz-se maior num milagre resplandecente e dourado. Há rostos desconhecidos que se dão a conhecer com vontade. Somos iguais e alegremente diferentes. Para todos há um pedaço largo de bondade e bolo-rei. Os olhares são genuínos e os abraços não escondem falsidades. A conversa não se arrasta em exíguas teorias sobre o colapso das últimas políticas. Não se detém na crise, nos cortes orçamentais, nas dificuldades e desconfianças mosqueadas de escuro, na opressão de um país em ruinas. Não se abordam créditos, hipotecas, empréstimos de alto risco e de taxas variáveis mas apenas o lucro e a garantia de valores ressuscitados. Fala-se mais e com maior entusiasmo do que alguma vez se falou noutros Natais.

A estrela ponteira reconstitui, ainda, as memórias daqueles que amei e que já partiram. Leva-me ao seu céu de brilhos sem economias. Qualquer corolário de uma troika inflexível não seria mais duro do que essas perdas irreversíveis, acontecidas em dias de vento Árctico.

“Haverá sempre, para esta crise, um recurso viável que partirá da tua vontade”, parece-me segredar a sábia essência desses que amei e que já partiram, numa verdade declarada de quem já pode ver sem sombra alguma.

Por um acaso anónimo que não sei decifrar, um cântico vindo, provavelmente, dessa essência sem substância, faz-se ouvir elevado de sinos, sopranos e um ameno calor. Grandiosa e suave esta nova sonância com ecos ecuménicos de tranquilidades. Afortunados nós, nação global, antecipando um futuro nesta árvore fértil do mundo.

Nos meus olhos deslocam-se as estrelas. Naquele horizonte, há hoje um sol maior, uno de todas as manhãs alargadas."

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