Parabéns, Dr. Mário Soares

Mário Soares ensinou-nos que não há donos da democracia, nem alguém acima das leis. Isso continua a ser verdade hoje, tal como em 1975.

Mário Soares fez ontem 90 anos. Com um dia de atraso, gostava de lhe enviar daqui um respeitoso abraço de parabéns.

Como agora é costume dizer, devo apressar-me a declarar um eventual conflito de interesses: fui seu consultor para assuntos políticos no primeiro mandato presidencial, entre 1986 e 1990, e coordenei mais tarde, em 1996-97, o primeiro ciclo de conferências (“A Invenção Democrática”) da sua Fundação Mário Soares.

Tenho por isso uma enorme dívida de gratidão pessoal para com Mário Soares, tal como para com Maria Barroso, sua mulher, o que evidentemente não me recomenda como “espectador imparcial”. Mas esta minha enorme dívida, especificamente pessoal, é ainda assim muito ínfima — quando comparada com a gigantesca dívida que eu e todos os portugueses que amam a liberdade devem a Mário Soares e a Maria Barroso.

Esta dívida de gratidão tem recentemente sido questionada por várias propostas revisionistas da história da democracia portuguesa. Não tenho aqui espaço para as discutir.  Mas o semanário Expresso proporcionou-nos, na penúltima edição, o melhor lembrete sobre a dívida que temos para com o casal Soares. Refiro-me à célebre entrevista da jornalista italiana Oriana Fallaci com Álvaro Cunhal, de 6 de Junho de 1975, agora republicada na íntegra na série Grandes Entrevistas (Vol. 5, 30 de Novembro de 2014, pp. 52-74).

Gostaria de voltar neste espaço a uma análise detalhada dessa entrevista, talvez na próxima semana. Para já, talvez seja suficiente começar por recordar a explícita animosidade de Cunhal contra os socialistas liderados por Mário Soares:

“Um pacto com os socialistas, como o que fizeram (os comunistas italianos em 1948) Nenni e Togliatti, não nos serve. Já assinámos esse pacto com o MFA.” (p. 58). Mais à frente, dirá: “E o que me importa a mim o que diz Soares? Ele também diz que existe um imperialismo soviético” (p. 72). “Nunca fui professor de Mário Soares. Se tivesse sido, teria sido um péssimo professor” (p.71).

Convém agora recordar o que Álvaro Cunhal disse sobre a democracia:

“(O que eu entendo por democracia não é) certamente o que vocês, os pluralistas, entendem. Para mim, democracia significa liquidar o capitalismo e os monopólios. E ainda lhe digo mais: Portugal já não tem qualquer hipótese de estabelecer uma democracia ao estilo das que vocês têm na Europa ocidental (p.61). Garanto-lhe que em Portugal não haverá um parlamento (p.59). Não queremos uma democracia como a vossa (p. 62). Portugal não será um país com as liberdades democráticas e os monopólios. Não será companheiro de viagem das vossas democracias burguesas. Porque não o permitiremos. Talvez voltemos a ter um Portugal fascista (ainda que eu não acredite nisso). Mas seguramente que não teremos um Portugal social-democrata. Jamais.” (pp. 73-4).

Mário Soares certamente não derrotou sozinho este fanático das estepes chamado Álvaro Cunhal — que esteve à beira de tomar o poder entre nós. Mas certamente liderou, com Sá Carneiro e Freitas do Amaral, entre outros, a resistência do povo português à ameaça de nova ditadura comunista. E Álvaro Cunhal não deixou dúvidas sobre quem considerava o obstáculo principal na sua caminhada para a ditadura comunista: Mário Soares.

Em grande parte, isto devia-se à supremacia eleitoral dos socialistas nas primeiras eleições livres de 25 de Abril de 1975. E também à grande autoridade internacional de Mário Soares. Esta, por sua vez, decorria em boa parte do facto de ter sido líder da oposição não comunista ao regime de Salazar.

A firme adesão de Mário Soares à democracia (burguesa, no dizer de Cunhal) ficaria patente em muitos outros momentos cruciais da sua acção política. No governo do Bloco Central de 1983-85, em que enfrentou com Mota Pinto, Rui Machete e Ernâni Lopes a ameaça de bancarrota; no seu primeiro mandato presidencial de 1986-1991, em que recentrou o papel do Presidente da República como árbitro imparcial das regras do jogo democrático. Isto ficou particularmente claro em 1987, quando recusou uma coligação da esquerda (PS e PRD, com apoio do PCP) no Parlamento, contra o governo minoritário de Cavaco Silva, e convocou eleições antecipadas — que deram a primeira maioria absoluta a Cavaco Silva.

Não creio que a dívida de gratidão dos portugueses para com Mário Soares tenha sido diminuída pelas opiniões políticas peculiares por ele ulteriormente sustentadas. Mário Soares ensinou-nos que não há donos da democracia, nem alguém acima das leis. Isso continua a ser verdade hoje, tal como em 1975.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários